domingo, 26 de abril de 2009

O FÓRUM DO CAMPO LACANIANO

Entrevista inédita de Jacques Lacan à revista italiana Panorama (1974)

Entrevista a Emilio Granzotto
Publicada por Magazine Littéraire, Paris, n.428, fev/2004.
Tradução: Marcia Gatto

Nesta entrevista concedida em 1974, Jacques Lacan alerta sobre os perigos do retorno da religião e do cientificismo: a psicanálise é para ele o único baluarte aceitável contra as angústias contemporâneas.


EG - Fala-se cada vez mais freqüentemente de crise da psicanálise. Sigmund Freud, dizem, está ultrapassado, a sociedade moderna descobriu que sua obra não seria suficiente para compreender o homem nem para interpretar a fundo sua relação com o mundo.

JL - São histórias. Em primeiro lugar, a crise. Ela não existe, não pode existir. A psicanálise não encontrou exatamente seus próprios limites, ainda não. Ainda há tanto a descobrir na prática e no conhecimento. Em psicanálise, não há solução imediata, mas somente a longa e paciente busca das razões. Em segundo lugar, Freud. Como julgá-lo ultrapassado se nós ainda não o compreendemos inteiramente? O que é certo, é que ele nos fez conhecer coisas extremamente novas, que não poderíamos nem imaginar antes dele. Desde os problemas do inconsciente à importância da sexualidade, do acesso ao simbólico ao assujeitamento às leis da linguagem. Sua doutrina colocou em questão a verdade, é algo que concerne a todos e cada um pessoalmente. Uma crise é outra coisa. Eu o repito: estamos longe de Freud. Seu nome serviu para cobrir muitas coisas, houve desvios, os epígonos nem sempre seguiram fielmente o modelo, confusões foram criadas. Após sua morte em 1939, alguns de seus alunos também pretenderam exercer a psicanálise de maneira diferente, reduzindo seu ensinamento a alguma fórmula banal: a técnica como ritual, a prática como restrita ao tratamento do comportamento, e como meio de readaptação do indivíduo a seu meio social. É a negação de Freud, uma psicanálise de conforto, de salão.
Ele próprio o havia previsto. Há três posições insustentáveis, dizia ele, três tarefas impossíveis: governar, educar e exercer a psicanálise. Atualmente, pouco importa quem assume a responsabilidade de governar, e todo o mundo se pretende educador. Quanto aos psicanalistas, graças a Deus, eles prosperam, como os magos e curandeiros. Propor às pessoas ajudá-las significa um sucesso assegurado, e a clientela se acotovelando na porta. A psicanálise é outra coisa.

EG - O que exatamente?

JL - Eu a defino como sintoma - revelador do mal-estar da civilização na qual vivemos. Certo, não é uma filosofia. Detesto a filosofia, há tanto tempo ela não diz nada de interessante. A psicanálise também não é uma fé, e não me agrada chamá-la de ciência. Digamos que é uma prática e que ela se ocupa do que não está funcionando. Terrivelmente difícil porque ela pretende introduzir na vida do dia-a-dia o impossível, o imaginário. Ela obteve alguns resultados até o presente, mas ainda não tem regras e se presta a toda sorte de equívocos.
É preciso não esquecer que se trata de algo totalmente novo, seja do ponto de vista da medicina, seja do da psicologia e seus anexos. Ela também é muito jovem. Freud morreu há apenas trinta e cinco anos. Seu primeiro livro, A interpretação dos sonhos, foi publicado em 1900 com muito pouco sucesso. Foram vendidos, creio, trezentos exemplares em alguns anos. Ele tinha poucos alunos, tomados por loucos e nem mesmo de acordo com a maneira de colocar em prática e de interpretar o que tinham aprendido.

EG - O que não funciona hoje no homem?

JL - É essa grande lassidão, a vida como conseqüência da corrida pelo progresso. Através da psicanálise, as pessoas esperam descobrir até onde podemos ir carregando essa lassidão.

EG - O que empurra as pessoas a se fazer analisar?

JL - O medo. Quando lhe acontecem coisas, mesmo desejadas por ele, coisas que ele não compreende, o homem tem medo. Ele sofre por não compreender, e pouco a pouco cai num estado de pânico. É a neurose. Na neurose histérica, o corpo fica doente de medo de estar doente, e sem estar na realidade. Na neurose obsessiva, o medo coloca coisas bizarras na cabeça, pensamentos que não podemos controlar, fobias nas quais as formas e os objetos adquirem significações diversas, e que dão medo.

EG - Por exemplo?

JL - Acontece ao neurótico se sentir pressionado por uma necessidade assustadora de ir dezenas de vezes verificar se uma torneira está realmente fechada, ou se uma coisa está no lugar correto, sabendo entretanto com certeza que a torneira está como deve estar e que a coisa está no lugar onde ela deve se achar. Não há pílulas para curar isso. É preciso descobrir porque isso acontece conosco, e saber o que isso significa.

EG - E o tratamento?

Jacques Lacan - O neurótico é um doente que se trata com a palavra, e acima de tudo, com a dele. Ele deve falar, contar, explicar-se a si próprio. Freud define a psicanálise como a assunção da parte do sujeito de sua própria história, na medida em que ela é constituída pela palavra endereçada a um outro. A psicanálise é a rainha da palavra, não há outro remédio. Freud explicava que o inconsciente não é tão profundo quanto inacessível ao aprofundamento consciente. E ele dizia que nesse inconsciente, aquele que fala é um sujeito dentro do sujeito, transcendendo o sujeito. A palavra é a grande força da psicanálise.

EG - Palavra de quem? Do doente ou do psicanalista?

JL - Em psicanálise os termos "doente", "médico", "remédio" não são mais justos que as fórmulas no passivo que adotamos comumente. Dizemos: se fazer psicanalisar. É um erro. Aquele que faz o verdadeiro trabalho em psicanálise, é aquele que fala, o sujeito analisante. Mesmo se ele o faz da maneira sugerida pelo analista, que lhe indica como proceder e o ajuda por suas intervenções. Lhe é também fornecida uma interpretação.
À primeira vista, ela parece dar um sentido ao que o analisante diz. Na realidade, a interpretação é mais sutil, tendendo a apagar o sentido das coisas pelas quais o sujeito sofre. O objetivo é mostrar-lhe através de sua própria narrativa que o sintoma, a doença digamos, não tem nenhuma relação com nada, que ela é privada de qualquer sentido que seja. Mesmo se na aparência ela é real, ela não existe.
As vias pelas quais esse ato da palavra procede, reclamam muita prática e uma infinita paciência. A paciência e a medida são os instrumentos da psicanálise. A técnica consiste em saber medir a ajuda que damos ao sujeito analisante. Em conseqüência, a psicanálise é difícil.

EG - Quando falamos de Jacques Lacan, associamos inevitavelmente esse nome a uma fórmula, o "retorno a Freud". O que isso significa?

JL - Exatamente o que é dito. A psicanálise é Freud. Se queremos fazer psicanálise, é necessário voltar a Freud, a seus termos e a suas definições, lidos e interpretados no sentido literal. Fundei em Paris uma Escola freudiana precisamente com esse objetivo. Há vinte anos ou mais que exponho meu ponto de vista: retornar a Freud significa simplesmente tirar o terreno dos desvios e dos equívocos da fenomenologia existencial por exemplo, como do formalismo institucional das sociedades psicanalíticas, retornando a leitura do ensinamento de Freud segundo os princípios definidos e enumerados a partir de seu trabalho. Reler Freud quer dizer somente reler Freud. Quem não faz, em psicanálise, utiliza uma fórmula abusiva.

EG - Mas Freud é difícil? E Lacan, dizem, o torna completamente incompreensível. A Lacan repreende-se falar e sobretudo escrever de tal maneira que somente muito poucos adeptos podem esperar compreender.

Jacques Lacan - Eu sei, tornam-me por um obscuro que esconde seu pensamento em cortinas de fumaça. Eu me pergunto por que. A propósito da análise, repito com Freud que é "o jogo intersubjetivo através do qual a verdade entra no real". Não está claro? Mas a psicanálise não é um negócio para crianças.
Meus livros são definidos como incompreensíveis. Mas para quem? Eu não os escrevi para todo o mundo, para que sejam compreendidos por todos. Ao contrário, nunca me ocupei minimamente de qualquer leitor que seja. Eu tinha coisas a dizer e as disse. É me suficiente ter um público que leia. Se ele não compreende, paciência. Quanto ao número de leitores, tive mais sorte que Freud. Meus livros são mesmo muito lidos, fico surpreso com isso.
Também estou convencido de que em dez anos no máximo, aquele que me lerá me achará extremamente transparente, como um belo copo de cerveja. Talvez até se diga então: "Esse Lacan, que banalidade!"

EG - Quais são as características do lacanismo?

JL - É um pouco cedo para dizê-lo, no momento em que o lacanismo ainda não existe. Sentimos dele apenas o cheiro, como pressentimento.
Lacan, em todos os casos, é um senhor que pratica a psicanálise há pelo menos quarenta anos, e que há tantos anos a estuda. Eu creio no estruturalismo e na ciência da linguagem. Escrevi em meu livro que "aquilo a que nos leva a descoberta de Freud é à enormidade da ordem na qual entramos, na qual nascemos, se podemos nos exprimir assim, uma segunda vez, saindo do estado chamado a justo título infans, sem palavra".
A ordem simbólica sobre a qual Freud fundou sua descoberta é constituída pela linguagem como momento do discurso universal concreto. É o mundo da palavra que cria o mundo das coisas, inicialmente confusas em tudo aquilo que está em devir. Há somente as palavras para dar um sentido completo à essência das coisas. Sem as palavras, nada existiria. O que seria o prazer sem o intermediário da palavra?
Minha opinião é que Freud, enunciando em suas primeiras obras – A interpretação dos sonhos, Além do princípio do prazer, Totem e tabu - as leis do inconsciente, formulou, como precursor, as teorias com as quais alguns anos mais tarde Ferdinand de Saussure teria aberto a via à lingüística moderna.

EG - E o pensamento puro?

JL - Ele está submetido como todo o resto às leis da linguagem. Somente as palavras podem engendrá-lo e dar-lhe consistência. Sem a linguagem a humanidade não daria um passo adiante nas pesquisas / buscas do pensamento. É o caso da psicanálise. Qualquer que seja a função que possamos lhe atribuir, agente de cura, formação ou de sondagem, há apenas um meio do qual nos servimos: a palavra do paciente. E toda palavra merece resposta.

EG - A análise como diálogo, portanto. Há pessoas que a interpretam mais como um sucedâneo da confissão.

JL - Mas que confissão? Ao psicanalista confessamos um belo nada. Deixamo-nos ir a lhe dizer simplesmente tudo que se passa pela cabeça. Palavras, precisamente. A descoberta da psicanálise é o homem como animal falante. Cabe ao analista ordenar as palavras que ele ouve e dar-lhes um sentido, uma significação. Para fazer uma boa análise, é necessário o acordo, o entendimento entre o analisante e o analista. Através do discurso de um, o outro procura imaginar do que se trata, e encontrar além do sintoma aparente o nó difícil da verdade. A outra função do analista é explicar o sentido das palavras para fazer compreender ao paciente o que se pode esperar da análise.

EG - É uma relação de extrema confiança.

JL - Mais uma troca, na qual o importante é que um fala e o outro escuta. Também o silêncio. O analista não faz pergunta e não tem idéias. Ele só dá as respostas que ele quer realmente dar às questões que sua vontade suscita. Mas ao final, o analisante vai sempre aonde seu analista o leva.

EG - O senhor acaba de falar do tratamento. Há possibilidade de curar? Sai-se da neurose?

JL - A psicanálise tem sucesso quando ela limpa o terreno, sai do sintoma, sai do real. Quer dizer quando ela chega à verdade.

EG - O senhor pode enunciar o mesmo conceito de uma maneira menos lacaniana?

JL - Eu chamo sintoma tudo aquilo que vem do real. E o real tudo aquilo que não vai bem, que não funciona, que se opõe à vida do homem ao afrontamento de sua personalidade. O real volta sempre ao mesmo lugar. Você sempre encontrará lá, com os mesmos semblantes. Por mais que os cientistas digam que nada é impossível no real. É preciso ter um grande topete para afirmar coisas desse gênero, ou então, como eu suspeito, a total ignorância do que se faz e diz.
O real e o impossível são antitéticos, eles não podem caminhar juntos. A análise empurra o sujeito para o impossível, ela lhe sugere considerar o mundo como ele é realmente, isto é, imaginário, sem significação. Enquanto que o real, como um pássaro voraz, só faz se alimentar de coisas sensatas, de ações que têm sentido. Ouve-se repetir que é preciso dar um sentido a isso e a aquilo, a seus próprios pensamentos, a suas próprias aspirações, aos desejos, ao sexo, à vida. Mas da vida não sabemos nada de nada. Os sábios perdem o fôlego a nos explicar.
Meu medo é que por seus erros, o real, essa coisa monstruosa que não existe, acabe por conseguir, por levar a melhor. A ciência é substituída pela religião, e ela é de outra maneira mais despótica, obtusa e obscurantista. Há um deus-átomo, um deus-espaço, etc. Se a ciência ganha ou a religião, a psicanálise está acabada.

EG - Atualmente, que relação existe entre a ciência e a psicanálise?

JL - Para mim a única ciência verdadeira, séria, a ser seguida, é a ficção científica. A outra, a oficial, que tem seus altares nos laboratórios, avança às cegas, sem meio correto. E ela até começa a ter medo de sua sombra. Parece que chegou o momento da angústia para os sábios. Em seus laboratórios assépticos, alinhados em seus jalecos engomados, esses velhos bambinos que brincam com coisas desconhecidas, fabricando aparelhos cada vez mais complicados e inventando fórmulas cada vez mais obscuras, começam a se perguntar o que poderá acontecer amanhã, o que essas pesquisas sempre novas acabarão por trazer. Enfim! Digo. E se fosse muito tarde?
Os biólogos se perguntam agora, ou os físicos, os químicos. Para mim, eles são loucos. Já que eles já estão mudando a face do universo, vem-lhes ao espírito somente agora se perguntar se por acaso isso pode ser perigoso. E se tudo explodisse? Se as bactérias criadas tão amorosamente nos brancos laboratórios se transformassem em inimigos mortais? Se o mundo fosse varrido por uma horda dessas bactérias com toda a merda que o habita, a começar por esses sábios dos laboratórios? Às três posições impossíveis de Freud, governo, educação, psicanálise, eu acrescentaria uma quarta, a ciência. Ademais, que os sábios não sabem que sua posição é insustentável.

EG - Eis uma versão bastante pessimista do que chamamos progresso.

JL - Não, é algo completa-mente diferente. Eu não sou pessimista. Nada acontecerá. Pela simples razão de que o homem é uma porcaria, nem mesmo capaz de destruir a si próprio. Pessoalmente, acharia maravilhoso um flagelo total produzido pelo homem. Isso seria a prova de que ele conseguiu fazer alguma coisa com suas mãos, sua cabeça, sem intervenções divina, natural ou outros.
Todas essas belas bactérias superalimentadas para a diversão, espalhadas através do mundo como os gafanhotos da Bíblia, significariam o triunfo do homem. Mas isso não acontecerá. A ciência atravessa felizmente essa crise de responsabilidade, tudo entrará na ordem das coisas, como se diz. Eu anunciei: o real levará vantagem, como sempre. E nós estaremos como sempre ferrados.

EG - Outro paradoxo de Jacques Lacan. Censuram-lhe, além da dificuldade da língua e a obscuridade dos conceitos, os jogos de palavras, os gracejos de linguagem, os trocadilhos à francesa, e justamente, os paradoxos. Aquele que escuta ou que lê o senhor tem o direito de se sentir desorientado.

JL - De fato eu não brinco, digo coisas muito sérias. Eu apenas me sirvo da palavra como os sábios de que falei de seus almanaques e de suas montagens eletrônicas. Eu procuro me referir sempre à experiência da psicanálise.

EG - O senhor diz : o real não existe. Mas o homem médio sabe que o real é o mundo, tudo que o cerca, que ele vê a olho nu, toca.

JL - Livremo-nos também desse homem médio que, em primeiro lugar, não existe. É apenas uma ficção estatística. Existem indivíduos, é tudo. Quando ouço falar do homem da rua, de pesquisas de opinião, de fenômenos de massa e de coisas desse gênero, penso em todos os pacientes que vi passar pelo divã em quarenta anos de escuta. Nenhum, em qualquer medida, é semelhante ao outro, nenhum tem as mesmas fobias, as mesmas angústias, o mesmo modo de contar, o mesmo medo de não compreender. O homem médio, quem é? Eu, o senhor, meu zelador, o presidente da República?

EG - Nós falávamos de real, do mundo que todos nós vemos.

JL - Justamente. A diferença entre o real, isto é, o que não vai bem, e o simbólico, o imaginário, isto é, a verdade, é que o real é o mundo. Para constatar que o mundo não existe, que ele não está aqui, é suficiente pensar em todas as banalidades que uma infinidade de imbecis acreditam ser o mundo. E convido meus amigos da Panorama, antes de me acusarem de paradoxo, a refletirem bem sobre o que leram apenas.

EG - Dir-se-ia que o senhor está cada vez mais pessimista.

JL - Não é verdade. Não me enquadro nem entre os alarmistas nem entre os angustiados. Infeliz do psicanalista que não tiver ultrapassado o estádio da angústia. É verdade, existem à nossa volta coisas horripilantes e devoradoras, como a televisão pela qual uma grande parte de nós é fagocitada. Mas isto é apenas porque existem pessoas que se deixam fagocitar, que até inventam um interesse para aquilo que elas vêem. E depois há outras coisas monstruosas devoradoras de outra maneira: os foguetes que vão à lua, as pesquisas no fundo dos oceanos, etc. Todas as coisas que devoram. Mas não há porque se fazer um drama disso. Estou certo de que assim que estivermos de saco cheio de foguetes, da televisão e de todas suas malditas pesquisas no vazio, encontraremos outra coisa com a qual nos ocuparmos. É uma revivescência da religião, não é? E que melhor monstro devorador do que a religião? É uma festa contínua com a qual se divertir por séculos, como isso já foi demonstrado.
Minha resposta a tudo isso é que o homem sempre soube se adaptar ao mal. O único real que podemos conceber, ao qual temos acesso, é justamente este, será preciso se fazer uma razão: dar um sentido às coisas, como dizíamos. De outra forma, o homem não teria angústia, Freud não teria se tornado célebre, e eu seria professor de segundo grau.

EG - As angústias são toda dessa natureza ou existem angústias ligadas a certas condições sociais, a certa época histórica, a certas latitudes?

JL - A angústia do sábio que tem medo de suas descobertas pode parecer recente. Mas o que sabemos nós do que aconteceu em outros tempos? Dos dramas de outros pesquisadores? A an-gústia do operário escravo da cadeia de montagem como de um remador de gale-ra, é a angústia de hoje. Ou, mais simplesmente, ela está ligada às definições e palavras de hoje.

EG - Mas o que é a angústia para a psicanálise?

JL - Algo que se situa fora de nosso corpo, um medo, mas de nada, que o corpo, espírito incluído, possa mo-tivar. O medo do medo, em suma. Muitos desses medos, muitas dessas angústias, no nível em que os percebemos têm a ver com o sexo. Freud dizia que a sexualida-de é sem remédio e sem esperança. Uma das tarefas do analista é encontrar na palavra do paciente a relação entre a angústia e o sexo, esse grande desconhecido.

EG - Agora que se distribui sexo em todas as curvas, sexo no cinema, sexo no teatro, na televisão, nos jornais, nas canções, nas praias, ouve-se dizer que as pessoas estão menos angustiadas com os problemas ligados à esfera sexual. Os tabus caíram, dizem, o sexo não dá mais medo.

JL - A sexomania invasora é apenas um fenômeno publicitário. A psicanálise é uma coisa séria que diz respeito, repito-o, a uma relação estritamente pessoal entre dois indivíduos: o sujeito e o analista. Não existe psicanálise coletiva assim como não existe angústias ou neuroses de massa.
Que o sexo seja colocado na ordem do dia e exposto na esquina das ruas, tratado como um detergente qualquer nos carrosséis televisivos, não comporta nenhuma promessa de algum benefício. Não digo que isso seja ruim. Não é suficiente certamente para tratar as angústias e os problemas particulares. Faz parte da moda, dessa fingida liberalização que nos é fornecida, como um bem dado de cima, pela dita sociedade permissiva. Mas não serve ao nível da psicanálise.
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Transmitir Psicanálise?
Exercício de psicanálise em ato sobre a mulher no homem.


TO TRANSMIT PSYCHOANALYSIS?
Exercise of psychoanalysis in act about the woman in man.

RICHARD ABIBON

Tradução Mirian Giannella


Palavras-chave: psicanálise, sonho, criança, feminilidade


Richard Abibon
Títulos: Mestre em Psicologia, DEA em Educação, DESS em Psicopatologia,
Doutor em Psicologia, Universidade Louis Pasteur, Strasbourg. Tese: Psychose et Féminité [Psicose e feminilidade], sob a orientação de Jean-Pierre Bauer.
Filiações: 1993-1998: Membro da École Freudienne (Solange Faladé)
1996- 2005: Membro Dimensions de la psychanalyse (René Lew)
2005-2006: Membro da Association Lacanienne Internationale (Charles Melman)
Desde 2006 não é mais membro de nenhuma instituição.
60, rue Emeriau, Tour Panorama 2304,
75015, Paris, França
Tel.: 0145751522 / 0684759406
e-mail: abibonrichard@wanadoo.fr

Mirian Giannella
Bacharel em Ciências Sociais e Políticas, FESP/SP, 1977
Especialização em Psicologia e Psicanálise, PARIS 8, 1982; em Educação, IBEJI, 2000;
em Tradução francês-português, FFLCH/USP, 2000.
Modera o Grupo de Apoio Vida de Mulher, Adolescer,
psicanalise_lista e Observatório Sociológico do Yahoo, entre outros...
Rua Comendador Elias Assi, 429
05516-000, Butantã, São Paulo, SP, Brasil
Tel/fax: 3726 8119
e-mail: giannell@uol.com.br


São Paulo
2007
RESUMOS

Resumo:

Em oposição à ciência, a psicanálise inverte radicalmente as posições do sujeito e do objeto. É então enquanto sujeito que faço uma pesquisa sobre o sujeito do inconsciente: estudando um de meus próprios sonhos. Neste descobre-se uma posição profundamente inconsciente desse sujeito que sou: o desejo de dar colo para uma analisante como se dá colo para uma criança. O que significa que me situo enquanto mãe nesta transferência. Isto já é suficiente para afirmar que o sexo anatômico não é o todo da sexuação. Seria suficiente para afirmar que a feminilidade se resume à maternidade?

Palavras-chave : psicanálise, sonho, criança, feminilidade

Résumé :

Par opposition à la science, la psychanalyse renverse radicalement les positions du sujet et de l’objet. C’est donc en tant que sujet que je pose une recherche sur le sujet de l’inconscient : en étudiant un de mes propres rêves. Dans celui-ci se découvre une position profondément inconsciente de ce sujet que je suis : le désir de porter une analysante comme on porte un enfant. Ce qui signifie que je me situe en tant que mère dans ce transfert. C’est déjà suffisant pour affirmer que le sexe anatomique n’est pas le tout de la sexuation. Est-ce suffisant pour affirmer que la féminité se résume à la maternité ?

Mots-clés : psychanalyse , rêve, enfant, féminité

Resumen:

En comparación con la ciencia, el psicoanálisis invierte radicalmente las posiciones del sujeito y el objeto. Es pues como sujeito que coloco una investigación sobre el sujeito del inconsciente: estudiando uno de mis propios sueños. En éste se descubre una posición profundamente inconsciente de este sujeito que soy: el deseo de llevar una analidsnte como se lleva a un niño. Lo que significa que me sitúo como madre en esta transferencia. Es ya suficiente para afirmar que el sexo anatómico no es todo ello del sexuation. ¿Es suficiente para afirmar que la feminidad se resume a la maternidad?

Palabras clave: psicoanálisis, sueño, niño, feminidad

Abstract:
In opposition to science, psychoanalysis radically reverses the positions of the subject and object. It is therefore as a subject that I formulate a research regarding the subject of the unconscious by studying one of my own dreams. Within this dream, a position profoundly unconscious regarding the subject that I am is revealed: the desire to carry an analysand as one carries a child. This means that I situate myself as a mother within this transference. It already suffices to claim that anatomic sex is not all there is about sexuation. Is it sufficient to claim that only feminity amounts to maternity ?

Keywords: psychoanalysis, dream, child, feminity.
O QUE é transmitir psicanálise?
Exercício de psicanálise em ato sobre a mulher no homem.

Richard Abibon

Tradução Mirian Giannella

Revisão Cláudia Berliner


Durante anos pensei que transmitia psicanálise pela topologia. Parecia-me a linguagem matemática universal, compreensível por todos os povos, independente das línguas, mas em posse das características necessárias à transcrição do discurso analítico, ou seja, a mesma estrutura que a estrutura da linguagem. Já não penso assim, agora me parece algo obscuro; –minha preocupação é transmitir a psicanálise, e já não creio que transmitir topologia transmita psicanálise, ainda que eu tenha sido o único, creio, a tentar fazer o laço da teoria topológica com a prática da psicanálise. Fui, aliás, obrigado a inventar, a partir da topologia de Lacan, uma topologia específica adaptada às necessidades que encontrava na prática.

Por que não mais topologia?
1) Dois livros terminados não editados.
A resposta dos editores interessados era sempre a mesma: é muito interessante, mas topologia não vende.
2) A afluência aos seminários de topologia, não apenas aos meus, mas aos das sumidades parisienses em topologia, Vappereau ou Darmon, afluência sempre mínima em comparação com o que a psicanálise atrai de público, essa afluência não pára de diminuir.
3) As divergências entre as topologias.
Entre os continuadores de Lacan que se lançaram no desenvolvimento do que ele trouxe em matéria de topologia, cada um construiu uma topologia que não tem muito a ver com a do vizinho. Para citar os que conheço bem e cujo ensino segui durante anos, menciono Vappereau, Lew, Harder, Thomé, Caussanel, Gilson…e eu. Não há nada a ver entre cada uma dessas topologias, cada um desenvolvendo sua linha numa direção, sem se preocupar em estudar a dos outros ou de fazer alguma coisa com ela ou até de dialogar. Esse é para mim o principal argumento, indicativo de que alguma coisa não vai bem no reino topológico: nele, os lugares (topoï) estão esparsos e sem laços lógicos entre si.
Darmon repete sobretudo a topologia de Lacan, ainda que acrescente precisões e esclarecimentos importantes.

Por que transmitir? E como?
Transmitir psicanálise seria transmitir saber? Nesse caso, a topologia é sem dúvida um saber, mas falta demonstrar que escreve alguma coisa da psicanálise, que pretende transmitir alguma coisa do não-saber que chama de inconsciente. Era o que me esforçava para demonstrar até então, tomando a imagem do nó borromeano para articular a topologia, a teoria analítica e sua prática.
Transmitir a verdade seria fazer dela um saber? Ao contrário, a verdade está no buraco[1], no branco que se abre no conteúdo do discurso, esse branco da voz branca, sem timbre, que às vezes denota angústia.
Acabei por considerar que transmitir psicanálise era transmitir não-saber. Cheguei aí a despeito de mim mesmo, ou seja, sem saber, o que é condizente com a lógica do que afirmo. Como? Dando ao inconsciente uma chance para se expressar, o inconsciente em ato em alguma coisa que se parece com uma sessão, e onde sou o analisante, posição que Lacan dizia ocupar no seu seminário. Captar esse momento de nascimento da psicanálise que é nascimento para o saber, momento frágil, instante de passagem do não-saber para o saber. Dar uma chance para o inconsciente falar, como momento de verdade.
E como ter mais chances de transmitir esse não-saber? Falando do não-saber, isto é, das formações do inconsciente, dos sonhos, lapsos, atos falhos, sintomas… dos seus próprios, claro, para permanecer no método freudiano: não se interpreta os dos outros. É por isso que alimento minhas intervenções, há muitos anos, com os meus próprios sonhos. São, de fato, as mais ricas e freqüentes formações do inconsciente à minha disposição.
Onde sinto ter sido ouvido, e só agora me dou conta, é quando me dizem que minha transmissão fez sonhar. Só agora, ou seja, depois de ter conversado com uma amiga e colega que me contou o sonho que teve depois de ter escutado meu último seminário. Fazia anos que ela não sonhava e eis que, de repente, a máquina inconsciente recuperou sua dinâmica. Isso fez voltar à minha lembrança o fato de que várias pessoas já me haviam feito a mesma confidência antes. Com a seguinte variante no caso dos psicanalistas: começavam a sonhar com os seus analisantes, o que nunca lhes tinha acontecido.
Falar dos próprios sonhos é arriscado, porque o inconsciente é perigoso; não é admissível, e às vezes me dizem: este não é o lugar apropriado. Deveria ficar reservado ao consultório do analista. Essas são as pessoas que rejeitam o que tenho a dizer. Dizem que jamais conseguiriam fazer isso. Então, projeção, eu não deveria fazer isso, pensam eles: acabo de fazer uma pura hipótese, pois como poderia saber o que pensam? Logo, é apenas uma explicação que me dou, e o autor da projeção, aqui, sou eu mesmo. Não posso censurá-los por acharem isso perigoso, por não o fazerem, não posso nem mesmo me queixar; o inconsciente não é algo que se controle; se você sente a necessidade de recalcar parte ou a totalidade do discurso de alguém, você o faz e, às vezes, está muito certo fazê-lo por que é uma questão de sobrevivência; o recalcamento é necessário para se proteger das coisas insuportáveis das quais está certo se proteger.
No entanto, para mim, parece o lugar lógico, o topoï lógico.

Como esse modo de transmissão poderia abrir um debate?
Um problema que se coloca é que aqueles que não rejeitam essa forma de transmissão não podem debater sobre o que analiso dos meus sonhos. Alguns tentam, mas passam longe do alvo, forçosamente... embora, nem sempre, é preciso deixar essa porta aberta, com prudência. Depois, tem os outros que pensam que, enfim, isso os faz apreender alguma coisa da psicanálise… não acham isso conscientemente, mas, no dia seguinte, têm um sonho.
Do outro lado, os que não suportam, isso às vezes desperta neles agressividade, o que, afinal, é também uma manifestação do inconsciente, e portanto nesses casos também consegui transmitir alguma coisa, mesmo que negativamente.
Dessa passagem do inconsciente, de um sonho ao outro, do sonho de um ao sonho do outro, falta fazer a teoria, não apenas da psicanálise vista assim, mas também da transmissão da psicanálise vista assim.
Fazer a teoria é forçosamente para os pares e para o público, em suma, para um outro, logo, é transmitir.

Fazer teoria fazendo publicamente a prática do analisante será válido como transmissão e será que faz teoria?

Em matéria de “direção” do tratamento, para retomar o termo de Lacan, que na minha opinião é bastante inconveniente, cada um pratica como pode e não como quer: “é o desejo do analista que opera” (Lacan: 1998, p.868, definição que, por outro lado, acho bem pertinente) e não seu querer; é o inconsciente e não o controle ilusório. Por isso não se trata de discutir se a prática de um ou de outro tem fundamento ou a legitimidade da interpretação dos meus sonhos. O mestre é o inconsciente (Lacan reinterpretando Hegel em «De um Outro ao outro», lição 24).
Trata-se de criar uma oportunidade para se dar conta do que opera como desejo. Logo, de transmitir dando-me conta no momento em que o digo, em que me dei a oportunidade de dizê-lo. Não é o sonho ou a “vinheta clínica” como ilustração da teoria, é efetivamente a exposição da análise em ato. Aí, alguma coisa da verdade passa, num lugar em princípio reservado ao saber, o topoï não muito lógico para isso, a universidade. Mesmo sendo apenas o lugar de um seminário fechado, ainda é forçosamente o discurso universitário. Isso é o que respondo aos que dizem que não é o lugar adequado, pois, dizendo isso, condena-se a psicanálise a se transmitir apenas como saber. Ora, é apenas um suposto saber, sabendo que é esse suposto saber que coloca em marcha uma dinâmica inconsciente, ou seja, uma transferência. Por que sempre confundir o suposto saber com o saber? Mas, pode ser um saber lidar (savoir faire) com o inconsciente e um saber se haver (savoir y faire) com o próprio sintoma. Tomo essas fórmulas emprestadas de Lacan, mas não é nem por causa desse empréstimo, nem pela repetição da palavra saber que isso constitui um saber.
Portanto, minha prática não pode produzir debate, já que tanto nos sonhos como nas formações do inconsciente o mestre é o inconsciente, não se pode discutir sobre isso em termos de saber. Minha interpretação dos meus sonhos, conforme o método de Freud[2] é irrefutável no sentido popperiano do termo, logo, não científica: ela não poderia constituir um saber. Irrefutável significa indiscutível.
Mas então, no que afirmo, o que pode produzir debate?
Podemos discutir o que se transmite inconscientemente, ou seja, eventualmente associar livremente, sabendo que é só associação e não luta de vida ou morte por puro prestígio (para trazer a citação de Hegel apreciada por Lacan) a fim de fazer valer seu saber como mais importante, mais válido ou mais forte que o do outro. Ou fazer o debate mais tarde, após uma noite de sono... Por exemplo, sonho que sou operado sob a direção de Sophie Marceau. Ao despertar, isso me faz associar com Sofia, a sabedoria, à qual assimilo a amiga e colega de quem falava acima. Conto-lhe, então, meu sonho, e ela, por sua vez, logo associa com Anna Karenina, cuja interpretação por Sophie Marceau, contara-me ela, muito a tinha tocado. Tinha esquecido completamente esse trecho da conversa. E foi muito bom que a associação dela o fizesse voltar à memória, pois me permitiu ir um pouco mais longe: ao suicídio de Anna Karenina que constituía o fundo daquela conversa.

O outro poderia dar-me a oportunidade de me interrogar sobre o que faço, pois, justamente, não sei o que faço

Num grupo, se cada um associar sobre tudo o que lhe vier à cabeça, pode virar bagunça e não levar a nada. É uma das questões que coloco. Mas abriria para o fato de que mesmo quem não sabe nada pode associar e contribuir para fazer avançar a psicanálise. Não é como num cenáculo reservado onde só os iniciados teriam direito a falar, sob a forma de: como, mas você não leu isso? Ou então: Releia Fulano e verá que tenho razão. Onde o escrito é o fiador da verdade do que se diz. O escrito e o Grande Nome.
Afinal, uma boa interpretação de um sonho, bem amarrada, pode deixar sem voz, como uma demonstração matemática: não há mais nada a dizer. Acontece que, justamente, os topólogos são os mais ferozes em não chegar a um acordo. Isso coloca para mim um problema de fundo.
Parece-me que a transmissão pelo sonho que evoquei acima, quando se dá apesar de todos, poupa-nos dessa “luta de vida ou morte por puro prestígio”.
Ah sim, supõe um sujeito castrado que deixa aberta a via para a sua inconsciência, o feminino nele.
Não estou no lugar do outro, e então gostaria que, em vez de condenar imediatamente meu ato em nome de um dogma (isto não se faz!), o outro me desse a oportunidade de me interrogar sobre o que faço, pois justamente não sei o que faço. Mas não posso pedir ao outro para reagir como gostaria, sou obrigado a tomar as suas reações tais como são.
Passemos então da teoria da prática à prática, a fim de ver se o que acabo de dizer dá conta de acrescentar algo à noção de feminilidade.
No seminário « Encore » [“Mais ainda...”], Lacan propõe as fórmulas da sexuação, ao final de longos anos de pesquisas inauguradas com o início da psicanálise. A psicanálise foi, de fato, inventada pela convivência de Freud com os histéricos, mulheres em sua maioria. Mas Freud foi o primeiro a fazer a comunidade científica admitir a existência de histéricos homens. À questão colocada pelas mulheres, Freud responderá com outra questão: « Was will das Weib ? » O que quer a mulher? Assim, desde o início, a questão da feminilidade se coloca na sua relação com a histeria. O fato de que existam histéricos homens desconecta o anodamento obrigatório da mulher e da histeria, mas isso não quer dizer que não haja anodamento, nem que, se houver histeria no homem, esta não esteja justamente ligada à parte de feminilidade nele.
Quando Lacan propôs as suas fórmulas da sexuação:
"x Φ x `$x `Φ x
$x`Φ x `"x Φ x
Ele precisa bem que, qualquer que seja o seu sexo biológico, é possível se inscrever à direita (feminino) ou à esquerda do quadro (masculino). Mas, logo se tende a pensar que, uma vez aí inscrito, deve-se lidar apenas com as inscrições do lado escolhido. Ora, é preciso lembrar que, ao contrário, todo ser falante que se inscreveu à direta ou à esquerda o fez em função das 4 fórmulas. O grande achado de Lacan foi ter mostrado que não se podia propor apenas uma fórmula masculina e uma fórmula feminina. Cada sexo tem de compor não só com as duas fórmulas do lado escolhido, mas com as quatro! Cada um só se situa homem ou mulher numa relação com o outro sexo. E a coisa se complica, pois essa relação deve ser concebida como uma não-relação!
Dito isso, o que ouço das mulheres na minha prática de analista? A partir da minha experiência, o que posso dizer do que quer uma mulher, hoje em dia? A mesma coisa que Freud ouviu: elas querem o pênis e, como substituto, um filho, e elas querem castrar os homens. Foi com surpresa, devo dizer, que me confrontei com esses dizeres. Essa surpresa também era a das mulheres ao descobrirem isso nos seus próprios sonhos, ou simplesmente pela análise das relações que mantinham com os homens e com os seus filhos.
Foi com essa mesma surpresa que descobri em mim a angústia da castração, o que não é mais fácil de assumir. Esse é meu lado homem. Embora situado desse lado, tive ainda mais uma surpresa, a de descobrir em mim uma inscrição feminina. Por isso, vou entrar logo no vivo da questão deixando falar essa inscrição feminina, tal como se coloca em jogo numa transferência, ou seja, no exercício da psicanálise.

Como um cachorro
Como sempre foi um sonho que me permitiu me dar conta:
Comprei uma casa de campo em algum lugar no Jura. Parei vindo de Paris, pois é a última estação antes de Besançon. Uma estação em tons de bege como o trem que nos trouxe de Limoges. Vou pegar o trem de novo e na plataforma onde tem muita gente me dou conta de que esqueci minha mochila. Volto correndo procurá-la apesar de ouvir o trem chegando. Volto pra casa que não é longe. Penso que esqueci a mochila no carro, um ami 8[3] bege, estacionado na frente da casa dos vizinhos situada entre a minha casa e a estação. Não sei como fiz, mas cheguei até perto da minha casa e tive que voltar em direção à estação, para a casa dos vizinhos... e, quando chego perto dela, percebo que este Ami 8 não é o meu, e vejo o meu na frente da minha casa. Devo então, de novo, voltar pra trás. Dentro do carro estava uma enorme bagunça, e foi difícil tirar a mochila do bagageiro. Além disso, na frente da casa, um pouco mais longe de onde o carro estava, encontro, no meio da lama, a minha pochete que continha a minha carteira, quer dizer, o meu dinheiro, a minha identidade, os meus óculos, o meu passe de metrô, enfim, o essencial. Dou-me conta também de que não havia fechado o carro à chave. Claro, como estava no campo ninguém roubaria nada, mas mesmo assim.
Então, o cachorro dos vizinhos faz festa saltando alegremente em mim, várias vezes. Fico contente. E depois, de repente, ele abaixa a cabeça, ganhando um ar um pouco triste e me diz num sopro: “tá doendo”. Fico surpreso: o cão fala! Vejo então que as suas patas de trás estão roxas. Ele pulou demais, talvez esteja velho. Digo-lhe: “não faz mal, vou te carregar no colo”. Pego-o nos braços como um bebê. Carrego-o um tempo, depois ele me diz: “Já estou melhor”. Isso também me espanta, não era um acaso, ele realmente falava! Ele quer descer. Tento segurá-lo ainda um pouco nos braços, mas nada a fazer, ele escapa e desce do colo.
Em casa, encontro os vizinhos que conheço bem, são amigos. Vou até eles para lhes falar do cachorro quando me cortam a palavra: a filha deles está sendo examinada por um médico. Teme-se uma doença muito grave. Uma lágrima escorre do olho do pai. Penso em falar do cachorro outra hora: não é o momento. (sábado, 8 de julho de 2006)
A primeira associação que se produziu ao acordar foi com uma analisante que vem sempre às seções com seu cachorro. É uma grande cadela branca de pelos curtos que logo entendeu que era para se deitar aos pés da dona e esperar. A cadela foi ficando tão relaxada durante as sessões que, um dia, minha analisante me fez notar que a cadela tinha se deitado de costas com as patas para cima, em posição de total confiança e abandono propriamente suspeita.
Em poucas palavras, a história dessa analisante, tal como a retive, resume-se a isto: anoréxica entre os 20 e os 30 anos, livrou-se de seus sintomas através de um aborto praticado nessa idade. A cadela veio logicamente substituir a criança perdida. Em compensação, seu companheiro, pai dessa criança, acaba de deixá-la dez anos depois, usando como pretexto aquela gravidez abortada, pois teria desejado ter o filho. A separação deles produziu a situação de terem de se revezar nos cuidados com a cadela, assim como acontece com um filho em circunstâncias semelhantes.
De fato, no meu sonho, tomo essa cachorra nos braços como uma criança. E, justamente, estava procurando meu carro, da mesma marca que meu primeiro carro, de há 30 anos. Por que havia comprado aquele carro? Para carregar uma criança, a minha filha, que tem hoje 30 anos e que acaba de colocar no mundo um menininho. Hoje em dia, um carro é, de fato, quase indispensável quando se tem um filho. Mas isso é apenas a superestrutura e o aspecto prático incontornável. O simbólico fez dele o substituto de uma identificação materna. Por não ter carregado minha filha na minha barriga, carrego-a pra lá e pra cá no carro. A identificação do corpo próprio com o carro parece-me, de todos os modos, universal. Quem já não disse ao sair de um lugar qualquer: “Onde será que eu estacionei?” O corpo é nosso veículo e o que veicula o corpo se torna metonimicamente um prolongamento do corpo. Logo, essa mochila que tiro com dificuldade do bagageiro, ganha todo um outro alcance. Minha barriga não serviu de saco para a criança, mas o carro lhe ofereceu um substituto. Essa mochila é então a própria criança, minha filha. Eu a esqueci, esta é a motivação de todas as tribulações do sonho. Nunca esqueci minha filha como tal, mas, por ocasião do nascimento de seu filho, ao carregá-lo reativei sensações de pesos e movimentos que tinham se apagado da minha memória consciente, mas não da minha memória corporal, inconsciente. E, na história, esqueci de pari-la, quer dizer, de tirá-la do carro. Isso seria, no mínimo, o que Freud chamaria de recalcamento originário. Pois não posso ter esquecido tal acontecimento, que nunca ocorreu. É um real: simplesmente é impossível que tenha ocorrido (cf. a definição de Lacan: o real é o impossível). Não é o que impede o desejo e sua representação nessa forma bastante desviada, mas finalmente bem explícita. Apresentar esse parto na forma de um esquecimento é desafiar o impossível colocando-o como uma simples contingência.
Daí os dois carros Ami 8 do meu sonho. Cada um deles me remete à experiência de nascimento da minha filha, mas meu esquecimento pretenderia me enganar: agora, o tempo passou e é de meu neto que se trata. Já não é em minha casa que o feliz nascimento acontece, mas na casa dos vizinhos, isto é, da minha filha, não longe de Besançon aonde sempre vou de trem, como o do meu sonho que ganhou as cores do carro. Atualmente, por escolha, não tenho carro, e é o trem que me veicula.
Somos vizinhos, quer dizer de gerações vizinhas. Mas minha memória corporal, visceral, fez-me hesitar entre dois lugares tão semelhantes que foram representados para mim pela mesma letra: Ami 8. A diferença aparece na observação que me veio sobre o cachorro: talvez esteja um pouco velho. Transpus para a criança a idade do avô, é com certeza mais confortável.
Esse parto impossível questiona a minha identidade. É o que diz minha pochete encontrada na lama, que contém o essencial do meu farnel, o dinheiro e a carteira de identidade. Mochila e pochete, grande saco e pequeno saco: se eu tivesse um grande saco a minha identidade não teria sido a de um pai, mas a de uma mãe. Parece que o inconsciente não dá grande valor a esse estatuto paterno, jogado na lama, em proveito da grande bolsa esquecida. Entretanto, o saquinho[4], fico bem feliz ao reencontrá-lo, sei o quanto me é precioso. Pode ser que a sua perda tenha sido o preço a pagar por ter um grande saco[5]: em suma, trata-se da castração. Quero dizer com isso que o saquinho, suporte da minha identidade, é portanto também testemunho da minha masculinidade. A pochete tem um cinto que coloco, em geral, por cima do cinto da calça, ficando a pochete pendente na frente quase sobre o sexo. Claro que se torna assim, em parte por causa de sua função identitária e, de outra parte, em razão de sua posição sobre o corpo, um representante do falo. Mas, se opto por um grande saco capaz de conter os bebês, ou seja, pela feminilidade, então é preciso aceitar o sacrifício desse pequeno saco falo, ou seja: a castração. No gênero humano, é assim: ou se está de um lado ou de outro, ou homem ou mulher e é preciso escolher. Mas tudo isso indica que não é assim tão simples, tão foraclusivo[6] quanto no enunciado precedente.
Minha filha não está doente, está, aliás, muito bem. Essa analisante, ao contrário, veio me ver definindo-se como doente dessa anorexia da qual se curou no dia em que abortou. Ela se curou da anorexia, sim, mas o mal-estar da ruptura com o companheiro se revelou profundo o suficiente para levá-la à análise. Ela evidentemente reativa aquele aborto, colocado como causa retardada da dita ruptura. E recoloca a questão do filho, quer dizer, da identidade materna, na forma dessa cadela que vem se deitar entre nós no mais total abandono.
A questão da identidade, sujeito, mulher, mãe, pai, filho repousa logicamente sobre o que se aceita colocar no interior. Freud imaginava este ato como fundador da humanidade, ou seja, de cada ser humano: o assassinato do pai, pontuado pela refeição totêmica na qual se devora o corpo assassinado para assimilar as suas virtudes. Só há pai no fundamento da humanidade a partir do momento em que há morte e em que essa conjunção do pai e da morte é incorporada, abrindo o sujeito ao conhecimento desse veículo corporal que ele inaugura devorando o de um outro.
Eu poderia dizer: é justamente essa a questão que minha analisante coloca ao contar sua vida dessa maneira: recusa de comer, depois, recusa de se tornar mãe. Recusa de colocar o que quer que seja no ventre. Mas seria apenas hipótese da minha parte, interpretação do seu dizer. Prefiro ater-me ao que o seu dizer suscita de representações inconscientes em mim. Ao menos falando de mim, estou seguro do que afirmo. Meu sonho é meu mesmo, o que interpreto dele é fruto das minhas associações livres. É verdade, irrefutável até, que essas associações vieram a mim. Não estou adivinhando o que poderia se passar na cabeça do outro, exponho-lhes apenas o que posso dizer do que se passa na minha. Estou falando do efeito do outro sobre mim, isto é, do traço que seu dizer deixou em mim, despertando traços pessoais não apenas esquecidos, mas profundamente arcaicos: o falso esquecimento de um desejo impossível.
Dizer que essas escrituras são as mesmas nela e em mim se deve, de novo, à hipótese, no mínimo arriscada. É a questão da identificação. Dizer que elas me permitem delimitar minha posição subjetiva em relação a ela, eis o que me parece ao mesmo tempo mais modesto e mais suscetível de certezas.
Assim, não direi que a anorexia, a recusa de comer, era para ela um meio de se identificar na forma daquela que diz não, não à preocupação constante de alimento que ela declara ter havido no seu ambiente familiar. Que era o seu modo de assassinar as injunções parentais, a fim de incorporar o vazio, quer dizer o sujeito. De fato, o sujeito é assimilável a um vazio; ao contrário do eu, ele não é substantificável. Mais precisamente, coloca-se no intervalo vazio entre os significantes, ou seja, o que articula os significantes: articular no sentido de lugar vazio necessário ao movimento de uma articulação física (cotovelo, joelho) e ao movimento articulatório da enunciação. Eu não afirmaria que essa recusa a comer tenha prosseguido no que, em um de seus sonhos, ela chamou de proibição do assassinato dos cangurus. À minha questão: o que é um canguru? Ela havia respondido: eles têm uma bolsa para os bebês.
Em contrapartida, tudo o que poderia dizer é que eu não tenho bolsa, nem saco para conter os canguruzinhos, nem os cachorrinhos doentes. Até parece que esta constatação é uma mágoa, corolária de um desejo de ser mãe, e então, mãe dessa analisante. Parece também que vivi o seu modo de me trazer o seu cachorro como uma demanda de colo, de se fazer carregar.
É o que ouço com surpresa no meu sonho, da boca do cachorro. Ele não pode andar, está com dor, suas patas ficaram roxas. O que não pode andar senão um bebê? Mas, sobretudo, isso não fala. Dou-me conta, por meio desse sonho, da frustração que nem sabia ter sentido por não ouvir meu neto me responder senão com risadinhas. Não o sabia por causa deste saber comum: os bebês não falam, não é? Então, por que esperaria uma resposta quando eu lhe falo? Isso mesmo, sem saber, esperava uma resposta sim, e é o que me faz atribuir essa palavra ao cachorro, do qual todo mundo sabe que também não fala. É por isso que os autores de livros infantis e as próprias crianças se apressam em atribuir fala aos animais.
Teria desejado que meu neto pudesse me dizer se estivesse com dor, ou se tivesse fome, ou o que mais? Bem sabia que não poderia obter resposta. Mas também sei que é dessa expectativa que advirá a sua palavra. Ele falará para responder a tudo o que eu lhe tiver dito, é preciso só um pouco de paciência, mesmo que o desejo do meu sonho pareça não tolerar tamanha sabedoria.
É assim também com essa analisante. Há nela um bebê que não fala. Não é uma afirmação que lhe concerne, seria mais uma vez uma hipótese ousada. É uma asserção que concerne ao meu desejo. Foi assim que a percebi, e em relação a ela vem à luz o mesmo desejo que em relação ao meu neto, reativando o mesmo desejo que tive por minha filha. Não apenas um desejo de carregá-la no meu ventre, e de tirá-la como uma mochila do carro, mas um desejo de carregá-la em seguida nos meus braços como qualquer mãe faz com seu filho recém-nascido.
E, enfim, um desejo de carregá-la na minha cabeça, o que é função de todo pai. De toda mãe também, claro, mas nesse assunto, o pai tem de se contentar com essa função.
Lembremos aqui a função de objeto a que, segundo Lacan, o analista ocupa. Em algum lugar, na “Carta Roubada”, ele afirma que a posse do objeto a feminiza. Sabe-se que esse objeto se imaginariza quase sempre sob os traços da mãe. Como se vê, foi assim que as coisas se deram nessa análise. Não é uma posição que ocupei voluntariamente, em função do que sei da teoria. É uma função inconscientemente assumida que descubro no decurso do sonho.
Vê-se bem daí, como o inconsciente não tem nada a fazer com a anatomia. Ser homem não me impede em nada, no exercício da psicanálise, de me situar como mulher em relação a essa analisante. E, de fato, é por isso que insisto sempre em dizer que não tenho pacientes. Os pacientes vão ao médico e pacientam enquanto o médico age, ou, em seu lugar, o medicamento. Eu tenho analisantes e o analisante age, coloca em ato a sua palavra e é esse o motor do tratamento. Para isso, precisa que o analista se aceite como passivo: o paciente é ele. Freud colocava a passividade como característica da feminilidade, precisando bem que não são as mulheres que são passivas. Mulher e feminilidade não são a mesma coisa, homem e mulher também não, homem e masculinidade também não. A anatomia é apenas um suporte para essas distinções das quais se começa a perceber a complexidade, longe de uma dicotomia. Acabo de lhes dar o exemplo disso, certamente pessoal, mas universalizável em relação à função que o analista garante.

Bibliografia

FREUD, Sigmund. Die Traumdeutung, GW II/III, p. 102 ;
_____ . L’interprétation des rêves. Traduzido em francês por I. Meyerson. França, PUF: 1976, p. 92;
_____ . Introduction à la psychanalyse. Traduzido em francês pelo Dr. S. Jankélévitch, Paris, Éditions Payot: 1976, nº6.
LACAN, Jacques. Encore, livre XX, 1972-1973. Paris, Éditions du Seuil: 1975, p. 73.
[1] Cf. meu artigo « la vérité est dans le trou » [“a verdade está no buraco”] disponível no meu site.
[2] “a psicanálise segue a técnica que consiste, o mais possível, em fazer o próprio sujeito analisando resolver os enigmas por si mesmo. Por isso é que o sonhador deve, por sua vez, ele mesmo nos dizer o que significa o seu sonho” (FREUD, Introduction à la psychanalyse, p.214) e “A técnica que vou expor nas páginas que seguem difere da dos antigos pelo fato essencial que ela encarrega o próprio sonhador do trabalho de interpretação”. (FREUD, GW II/III, p. 102; PUF p. 92)
[3] Ami, marca de carro francesa, em português quer dizer amigo.
[4] Petit sac em francês. (N. da T.)
[5] Sac é bolsa em francês e a associação com saco é literal, e pode sugerir bolsa escrotal e bolsa marsupial, mas também o útero, onde se carregam os bebês. (N. da T.)
[6] É foraclusivo o que separa radicalmente dois domínios. O que é branco não é preto. Ao contrário, o cinza ou um tabuleiro de xadrez será dito discordancial: há discordância, é negro e branco.

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