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DE PSICOPATOLOGIA
F U N D A M E N T A L
O que é
Psicopatologia Fundamental
Se para os romanos, posição significava lugar onde uma
pessoa ou coisa estaria colocada, para os gregos, a noção de
posição é de natureza muito mais relacional. Da posição
determinada pela postura do corpo, diferenciavam pelo menos
duas outras: a do historiador, que não inventa, apenas ouviu
falar por aí, e a do teatro, que mostrava o corpo humano em um
estado natural de pathos (sofrimento).
Ao se pensar o psiquismo e o aparelho psíquico como
prolongamentos do sistema imunológico e já que, segundo o autor,
pathos é sempre somático, a psique é, seguindo a tradição
socrática, estritamente corporal. É próprio, pois, à Psicopatologia
Fundamental, reconhecer a existência de múltiplas posições
corporais-discursivas e reconhecer que aqueles que ocupam
outras posições reconheçam a especificidade de sua posição.
A partir do conceito de posição, e seus desdobramentos em pathos
e logos, o autor desenvolve sua concepção de Psicopatologia
Fundamental.
Manoel Tosta Berlinck
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ARTIGOS
Inspirado no Laboratoire de Psychopathologie Fondamentale
et Psychanalyse de l’Université Paris 7 – Denis Diderot onde o
Professor Dr. Pierre Fédida e seus associados vêm desenvolvendo,
há mais de trinta anos, um trabalho universitário pioneiro, foi
criado, em fevereiro de 1995, o Laboratório de Psicopatologia
Fundamental do Núcleo de Psicanálise do Programa de Estudos
Pós-Graduados em Psicologia Clínica da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo. Mais recentemente, em abril de 1997, foi
criada a Rede Universitária de Pesquisa em Psicopatologia
Fundamental que reúne, por enquanto, pesquisadores de 13
universidades brasileiras e, de 2 universidades francesas. Estas
iniciativas, que constituem grupos permanentes de pesquisas e de
ensino, sustentam uma posição que precisa ser especificada.
Posição
É necessário, então, que a palavra posição seja inicialmente
entendida para que se compreenda, depois, o que é Psicopatologia
Fundamental.
Posição, que se origina no vocabulário militar romano, quer
dizer, inicialmente, lugar onde uma pessoa ou coisa está colocada.
Refere-se, no vocabulário latino, à distribuição do exército romano
e de seus recursos no espaço de batalha, já que a civilização
romana se funda na conquista de territórios, ao contrário da
civilização grega onde a guerra servia à hegemonia de um tipo
particular de cultura e para a emergência do herói.
Uma vez ocupado um território, conquistada uma posição,
o exército romano o integrava, com tudo o que continha, ao
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Império Romano. Os gregos, por sua vez, não tinham essa preocupação
colonizadora. Na civilização grega, especialmente na Atenas de Péricles, a noção
de posição, tendo também uma referência territorial, é de natureza muito mais
relacional. As posições, em Atenas, referem-se à postura do corpo, à maneira, à
pose como os moradores da polis – cidadãos e escravos, autóctones e
estrangeiros – se relacionam numa trama discursiva que se realiza, por excelência,
na ágora, ou seja, no espaço da retórica.
Richard Sennett, em Carne e pedra. O corpo e a cidade na Civilização
Ocidental (Rio de Janeiro, Record, 1997), chama a atenção para essa outra
dimensão da noção de posição que se refere à postura do corpo, na Grécia de
Péricles.
A cultura grega, diz ele, faz do andar e da postura ereta expressões de
caráter. Caminhar com firmeza denotava masculinidade. Num trecho admirável
da Ilíada, Homero escreveu que os troianos avançam em massa, seguindo Heitor,
que os conduzia em largas passadas”. Por outro lado, “quando as deusas Hera
e Atena surgiram diante de Tróia para socorrer os gregos [segundo Homero],
elas pareciam em seus passos de tímidas pombas – exatamente o oposto dos
heróis de grandes passadas”. Alguns desses atributos arcaicos persistiram na
cidade. O andar calmo e firme também indicava nobreza percorrer descuidado
as ruas é um traço que reputo desmerecedor de um cavalheiro, quando se pode
fazer isso de forma elegante”, diz o escritor Alexis. Supostamente, as mulheres
deviam caminhar lentamente, hesitantes, e o homem que fizesse o mesmo
pareceria efeminado. Ereto, hábil, ciente de onde quer chegar; a palavra orthos
– “irrepreensível” – carregava todas as implicações da retitude do macho e
contrastava com a passividade desonrosa, marca dos homens que se submetiam
à penetração anal. (Sennett, 1997, p. 44)
Orthos, então, que mais tarde resultou em ortopedia – arte de evitar ou
corrigir as deformidades do corpo – e ortodoxia – qualidade que se refere ao
fiel, exato e inconcusso cumprimento de uma doutrina e, por decorrência, à
intransigência em relação a tudo quanto é novo; a não aceitação de novos
princípios ou idéias – era posição adquirida no Ginásio ateniense que ensinava
... que o corpo era parte de uma coletividade maior, a polis, e que pertencia à
cidade. Um rapaz forte, obviamente, tomava-se bom guerreiro; uma voz educada
garantia sua participação nos negócios públicos... No ginásio, ensinava-se
como usar o corpo de forma que ele pudesse desejar e ser desejado com honra.
(Sennett, 1997, p. 42)
O processo de aprendizado da posição irrepreensível – orthos – prolongavase
na convivência com os filósofos e, mais tarde, quando esses decidiram se
organizar territorialmente, passou a ser praticado nas Academias onde se aprendia
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ARTIGOS
a caminhar, lutar, manter relações homoeróticas com honra e, principalmente, a
argumentar.
Quando o cidadão estava pronto para exercer sua posição irrepreensível
ele passava a frequentar a ágora onde múltiplas atividades transcorriam
simultaneamente, enquanto as pessoas se movimentavam, conversando em
pequenos grupos sobre diferentes assuntos ao mesmo tempo. Não havia nenhuma
voz dominante. A ágora, amplo sítio urbano, apresentava perigo para a linguagem,
pois nele, em meio às atividades concomitantes e ininterruptas, as palavras se
dispersavam entre os murmúrios e vozes; amassa de corpos em movimento nada
percebia além de fragmentos do sentido que elas expressavam. Por isso, os
cidadãos tinham que aprender a se destacar através da postura corporal, do uso
educado da voz e pela capacidade de argumentação aprendida com filósofos, para
se distinguirem dos escravos e dos metecos – os estrangeiros – que frequentavam
esse mesmo espaço.
Orthos regia o comportamento dos corpos humanos na ágora. O cidadão
procurava andar de forma determinada e tão rapidamente quanto possível, através
do torvelinho, encarando calmamente os estranhos. Tais movimentos, postura e
linguagem corporal irradiavam seriedade e correção de maneiras.
Segundo Sennett:
É evidente que o comportamento corporal que impõe a ordem na cena da
ágora não bastaria para conter os efeitos de atividades simultâneas sobre a
voz. Na corrente humana, as conversas eram fragmentadas com o movimento
dos corpos de um grupo para outro, gerando uma tensão individual quebrada
e dispersa. (Sennett, 1997, p. 50)
Essa posição se diferenciava pelo menos de outras duas: a do historiador e
a do teatro. Cada uma dessas posições conferia à multidão uma experiência
distinta da linguagem falada.
Segundo Jeanne Marie Gagnebin ( 1997), a palavra, grega historie tem, na
época de Heródoto de Halicarnassos, uma significação bastante diferente das
noções contemporâneas de história.
Naquele contexto
...ela remete à palavra histôr, “aquele que viu, testemunhou”. O radical comum
(v)id está ligado à visão (videre, em latim ver), ao ver e ao saber (oida em grego
significa eu vi e também eu sei, pois a visão acarreta o saber). Heródoto quer
apresentar, mostrar (apodexis) aquilo que viu e pesquisou. Trata-se, então, de
um relato de viagem, de um relatório de pesquisa, de uma narrativa informativa
e agradável que engloba os aspectos da realidade dignos de menção e de
memória. ...O que diferencia a sua pesquisa de outras formas narrativas não é
o(s) seu(s) objeto(s), mas o processo de aquisição destes
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conhecimentos.Heródoto fala daquilo que ele mesmo viu, ou daquilo de que
ouviu falar por outros; ele privilegia a palavra da testemunha, a sua própria ou
a de outrem... Esta preocupação – que podemos relacionar com a crescente
prática judiciária, na Grécia do século V, de audição de testemunhas – traz
consigo uma primeira diferença essencial entre a narrativa “histórica” de
Heródoto e as narrativas míticas, a epopéia homérica por exemplo. Heródoto
só quer falar daquilo que viu ou daquilo de que ouviu falar. O período
cronológico alcançado se limita, portanto, a duas ou três gerações antes de
sua visita, pois o resto do tempo se perde no não-mais-visto, isto é, no não
relatável. Em oposição ao nosso conceito de história, esta pesquisa, ligada à
oralidade e à visão, não pretende abarcar um passado distante. Tal restrição
também a delimita em relação ao discurso mítico, que fala de um tempo
longínquo, de um tempo das origens, tempo dos deuses e dos heróis, do qual
só as musas podem nos fazer lembrar, pois, sem elas, não podemos saber (idein)
aquilo que não vimos.
Muito mais que a consciência de inaugurar uma nova disciplina,
designada posteriormente pelo nome de história é esta oposição crescente à
tradição inítica que determina, de maneira diversa, tanto a obra de Heródoto
como a de Tucídides. É interessante notar que Heródoto, quando se refere às
várias partes de sua obra, não usa a palavra história mas sim a palavra logos
(discurso) para identificá-las; não fala da “história” dos Scitas, do Egito ou de
Darius, mas sim de logos scita, de logos egípcio ou de logos a respeito de
Darius etc. O próprio vocabulário insiste na grande oposição entre logos e
mythos, na qual vai se enraizar a distinção entre o discurso científico, filosófico
ou histórico e o discurso poético-mítico. Distinção progressiva que não tem
nada de necessário, nem de evidente, nem de eterno, como uma certa
historiografia iluminista triunfante gostaria de estabelecer. (Gagnebin, 1997,
p. 17)
O discurso do historiador, portanto, representa uma das posições existentes
na polis. Neste caso, não se trata de frequentar a ágora desde uma posição
irrepreensível, mas de visitá-la para registrar o que ali ocorre, através de
testemunhas e do olhar. Heródoto se confrontava, assim, com povos bárbaros
construindo uma imagem convincente de “nós”, dos gregos, em particular, dos
atenienses. Como ainda observa a professora Jeanne Marie Gagnebin,
...a confrontação com o “outro” permite, por um jogo de espelhos, pintar um
retrato do “mesmo” muito mais coerente e pleno do que teria feito uma simples
reprodução dos seus traços; somente a mediação pelo outro permite esta autoapreensão
segura de si mesmo. (Gagnebin, 1997, p. 23)
A posição de Heródoto, viajando pela Grécia e pelos povos bárbaros, visava,
então, mais do que relatar o ocorrido, garantir aos gregos uma memória que lhes
permitisse o reconhecimento de si ameaçado pela crescente presença dos
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ARTIGOS
estrangeiros na polis. Ver, escutar, anotar e relatar constituíam uma prática, mas,
também, um movimento que ocorria de uma posição. A noção de posição, então,
nem em orthos nem em historie supõe a imobilidade, mas inclui o movimento
corporal. Ao contrário dos cidadãos que se apresentavam na ágora, nas
assembléias políticas e nos simpósios filosóficos, o historiador se revelava por
viajar, observar, anotar e, principalmente, relatar o ocorrido estabelecendo as
diferenças entre os gregos e os estrangeiros.
Uma terceira posição que se manifesta na polis é a que se expressa no
teatro. Nos teatros da velha cidade, as pessoas já ocupavam seus lugares para
ouvir uma única e clara voz.
No teatro, a voz singular assumia forma artística, através das técnicas
da retórica. Os locais reservados aos espectadores eram tão organizados que
amiúde a eloqüência os vitimava, paralisando-os e humilhando-os com seu
fluxo. (Sennett, 1997, p. 47)
Já no chamado século de Péricles, que coincide com o tempo dos grandes
tragediógrafos – Ésquilo, Sófocles, Eurípides – e dos grandes comediógrafos –
Aristófanes – o teatro sofre várias modificações.
Assim, Péricles reúne os diversos teatros da velha cidade, fazendo construir
um grande espaço – o teatro de Oiôniso – que tinha capacidade para 30.000
espectadores, sentados em arquibancadas semicirculares escavadas na rocha das
encostas da Acrópole de Atenas. (Kury, 1992, p. 9)
Essas e outras circunstâncias possibilitaram mudanças nas representações
teatrais. Entretanto, o que é necessário ressaltar, aqui, é que dada a distribuição
do teatro, o público via-se na contingência de dobrar o torso para ver e melhor
ouvir o que estava sendo dito. Sentada, a platéia dá muito mais atenção ao que
ocorre à frente, fazendo pouco caso do que acontece ao lado ou atrás. Originalmente,
nesses patamares, as pessoas ocupavam seus lugares em bancos de madeira;
com Péricles, o teatro evoluiu para um sistema de largas passagens, separando
assentos de pedra mais estreitos, o que evitava que elas incomodassem
umas às outras com suas idas e vindas. A atenção do espectador permanecia
focada no plano central. A palavra “teatro” deriva do grego theatrom, que pode
ser traduzida literalmente como “um lugar para ver”. Um theorus – artista de
teatro – era considerado como uma espécie de embaixador, uma vez que o teatro,
realmente, corresponde a um tipo de atividade diplomática, ao trazer aos olhos
e ouvidos da assistência uma história de outro tempo ou lugar. Mas, nos tempos
de Péricles, o teatro já não era feito para a retórica que vitimava a platéia, paralisando-
a e humilhando-a com seu fluxo. Na nova época, quer na comédia, quer
na tragédia, o relato teatral não podia provocar catharsis e sim experiência. Quando
um tragediógrafo menos conhecido, pertencente já ao período da decadência
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ateniense, apresentou uma peça que desencadeou forte emoção nos espectadores,
foi condenado ao ostracismo, ou seja, expulso de Atenas por 10 anos.
As tragédias, representadas em Atenas, passam-se todas em Tebas,
assegurando, assim, uma distância necessária para a existência da experiência,
ou seja, o enriquecimento advindo dos pensamentos suscitados no público pela
representação.
A posição do teatro se opõe, assim, à do orthos porque aquele não pretende
convencer o interlocutor da irrepreensibilidade de sua posição e, sim, apresentar
um discurso mito-poiético epopéico que produza experiência. O teólogo Walter
Burkett resumiu esse contraste da seguinte maneira:
Mythos, como oposto de logos, que deriva de legein, quer dizer “reunir”,
ou associar fragmentos de indícios, de fatos verificáveis; logon didonai,
significa prestar contas diante de uma audiência crítica e desconfiada; mythos
é contar uma história sobre a qual não se tem responsabilidade: ouk emos
homythos, não inventei isso, apenas ouvi falar por aí. (cf. Sennett, 1997, p. 72)
A linguagem de Jogos liga os elementos. Logon didonai permite conexões:
existe um público suspicaz, julgando os argumentos do orador. Em todas as
formas de Jogos – de onde se deriva a lógica, cada vez mais querida dos filósofos
e que encontra em Aristóteles seu grande mestre grego – o orador é identificado
por suas palavras; elas lhe pertencem e impõem uma responsabilidade inalienável.
O pensamento político grego moldava idéias de democracia em tomo de
aspectos de Jogos. Conforme assinalou Clístenes, liberdade de expressão e debate
só fazem sentido se as pessoas estão cientes de sua imputabilidade; caso
contrário, os argumentos não têm valor, as palavras carecem de importância.
O orador não é responsável pelo que diz no mito, cuja linguagem está
vinculada à crença incorporada no aforismo helênico: “não inventei isso, apenas
ouvi falar por aí”. A maioria dos mitos, inclusive gregos, narra feitos de entes
mágicos ou de deuses, o que leva a crer que tenham sido eles próprios seus
autores; homens e mulheres apenas os passam adiante.
Portanto, a audiência não pode suspeitar do simples relator, como do orador
que, na assembléia política, reivindicasse crédito para o que diz. O mito é,
assim, a ratificação do compromisso social. Segundo a famosa definição de Aristóteles,
trata-se de “uma suspensão voluntária da descrença”. A mitologia que
deu origem – epos – aos primeiros dramas estabelece o verdadeiro contexto para
tal afirmação. Mito diz respeito à crença nas palavras em si mesmas. (Sennett,
1997, p. 73)
Segundo o classicista Froma Zeitlin, o teatro trágico grego (entenda-se,
aqui, também, o teatro da comédia já que, como se sabe, tragédia e comédia
andavam juntas, não se separavam) mostrava o corpo humano
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ARTIGOS
... em um estado não natural de pathos (sofrimento), quando se afastava de
seu ideal de força e integridade (...). A tragédia insiste (...) na exibição desse
corpo. (cf. Sennett, 1997, p. 53)
Nesse sentido, pathos, relato mito-poiético epopéico do sofrimento, era o
oposto de orthos. Ora, assim entendida, a tragédia é pathos-logos, ou seja,
linguagem de sofrimento que lança mão do recurso mito-poiético epopéico para
permitir experiência.
Pathos
Além de sofrimento, de pathos deriva-se, também, as palavras “paixão” e
“passividade”. Assim, a Psicopatologia Fundamental está interessada num sujeito
trágico que é constituído e coincide com o pathos, o sofrimento, a paixão, a
passividade. Este sujeito, que não é nem racional nem agente e senhor de suas
ações, encontra sua mais sublime representação na tragédia grega. O que se figura
na tragédia é pathos, sofrimento, paixão, passividade que, no sentido clássico,
quer dizer tudo o que se faz ou que acontece de novo, do ponto de vista daquele
ao qual acontece. Nesse sentido, quando pathos acontece, algo da ordem do
excesso, da desmesura se põe em marcha sem que o eu possa se assenhorear
desse acontecimento, anão ser como paciente, como ator.
Ora, é digno de nota que esse significado de pathos traga em sua franja o
sentido etimológico de passividade, sentido lembrado por Descartes no começo
do Tratado das paixões:
Tudo o que se faz ou acontece de novo é geralmente chamado pelos
filósofos de paixão (pathos) relativamente ao sujeito a quem isso acontece,
e de ação relativamente àquele que faz com que aconteça. (cf. Lebrun, 1987,
p. 17)
Aqui Descartes recorda brevemente a definição aristotélica do agir e do
padecer. Esses dois conceitos são inseparáveis, mas cada um deles designa uma
potência bem distinta. Padecer é inferior a agir por dois motivos. Em primeiro
lugar, é próprio do agente encerrar em si mesmo um poder de mover ou mudar,
do qual a ação é a atualização, o ajuste está naquilo que faz ocorrer uma forma.
Diz-se paciente, ao contrário, àquele que tem a causa de sua modificação em
outra coisa que não ele mesmo. A potência que caracteriza o paciente não é um
poder operar, mas um poder tornar-se, isto é, a suscetibilidade que fará com
que nele ocorra uma forma nova. A potência passiva está, então, em receber a
forma. Em termos aristotélicos, deve ser lançada à conta da matéria. Em segundo
lugar, padecer consiste essencialmente em ser movido, ao passo que o agente, à
medida que sua atividade própria está em comunicar uma forma, não é
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essencialmente mutável. Ocorre, decerto, que deve mover-se para agir sobre o
paciente, mas enquanto agente. E porque ele também é um ser que contém
matéria. O paciente, como tal, é que, por natureza, é um ser mutável,
caracterizado pelo movimento.
Nessa inferioridade do padecer, encontra-se, assim, a desqualificação,
própria dos clássicos gregos, da mobilidade relativamente à imobilidade. É por
conter matéria, isto é, indeterminação, que um ser se move. O fato de ter que
mudar (de lugar ou de quantidade ou de qualidade) para receber uma nova
determinação mostra que ela não possui todas as qualidades de uma só vez, e
que a aparição destas depende da intervenção de um agente exterior. Ora, este
último aspecto é fundamental para a determinação do pathos. É reagindo a uma
ofensa que sinto raiva. Sinto medo ao imaginar um perigo iminente que me possa
prejudicar ou destruir. O pathos é sempre provocado pela presença ou imagem
de algo que me leva à reagir, geralmente de improviso. Ele é, então, o sinal de
que eu vivo na dependência permanente do Outro. Um ser autárcico não teria
pathos.
Portanto, não existe pathos, no sentido mais amplo, senão onde houver
mobilidade, imperfeição ontológica. Se assim for, pathos é um dado do mundo
sublunar e da existência humana. Devemos contar com pathos. Devemos até
aprender atirar proveito dele. Tirar proveito de pathos significa transformá-lo em
experiência, ou seja, não só considerar pathos como estado transitório, mas
também como algo que alarga ou enriquece o pensamento. Na tradição trágica,
pathos rege as ações humanas que, em determinadas circunstâncias, constituem
um acontecimento. Assim é com o assassinato de Agamenon, assim é com o
assassinato de Laio. Quando isso acontece, pathos transforma-se em patologia,
ou seja, um discurso sobre o sofrimento, as paixões, a passividade. Quando,
entretanto, a experiência é anímica, ou seja, ao mesmo tempo terapêutica e
metapsicológica, estamos, então, no âmbito da Psicopatologia Fundamental.
Pathos, então, não nasce no corpo pois vem de longe e de fora. Mas passa
necessariamente pelo corpo e se expressa pela hybris, pela desmesura, fazendo
parte da natureza humana, da physis, que melhor se traduz por brotação.
Pathos brota no corpo sem dele fazer parte intrínseca e rege as ações humanas.
Ocupados com pathos – o sofrimento, as paixões, a passividade – os
filósofos, desde a antiguidade grega lhe opuseram o discurso racional – logon
didonai – que define a posição irrepreensível. Mas este, por se opor, sempre falha
(cf. Meyer, 1994). O psicopatológico, então, não solicita um discurso racional,
mas mito-poiético epopéico que, à medida que produz experiência, é terapêutico.
Em outras palavras, o psicopatológico contém uma terapéia no sentido empregado
por Platão em O banquete. Porque, em suma, faz parte da medicina como a arte
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ARTIGOS
de se ocupar dos fenômenos do amor. Quem se ocupa disso – os psicopatólogos
– são médicos, no entender de Erixímaco. “É com efeito a medicina, diz ele,
para falar em resumo, a ciência dos fenômenos do amor, próprios ao corpo”.
(cf. Fédida, 1988, pp. 28-29).
O médico, como nos lembra Platão, está constantemente em relação com
o amor porque as doenças físicas, em sua evolução, se apresentam como pathos,
paixões amorosas. O médico cuida de Eros doente. Terapéia, em grego, é o
cuidado exercido sobre Eros doente. O médico deve restabelecer o equilíbrio do
corpo para que Eros doente pelo excesso de amor, seja liberado desse excesso
pelo amor que lhe traz o médico. Amor de médico é amor justo: estabelece uma
contrapartida, um novo equilíbrio com a parte doente de Eros. Tal movimento é
possível porque pathos pode ser dosado, pois tanto ele como as ações são
movimentos e, como tais, contínuas, isto é, grandezas que podem ser divididas
sempre em partes e em graus menores, de tal forma que, quando age, é sempre
possível ao eu fixar a intensidade patológica apropriada à situação desde que com
a ajuda de um médico.
Em O banquete, o que se depreende é que a doença física não é somente
uma perturbação do amor, como só pode ser cuidada, se o médico – por ser
terapeuta – introduzir a justa proporção de amor.
Pathos, então, designa o que é pático, o que é vivido. Aquilo que pode se
tornar experiência. “Psicopatologia” literalmente quer dizer: um sofrimento, uma
paixão, uma passividade que porta em si mesma a possibilidade de um
ensinamento interno que não ocorre anão ser pela presença de um médico (pois
a razão é insuficiente para proporcionar experiência). Como pathos torna-se uma
prova e, como tal, sob a condição de que seja ouvida por um médico, traz em si
mesma o poder de cura. Isso coloca imediatamente a posição do terapeuta. Pathos
nada pode ensinar, pelo contrário, conduz à morte se não for ouvido por aquele
que está fora, por aquele que, na condição de espectador no teatro grego do
tempo de Péricles, se inclina sobre o paciente e escuta essa voz única se dispondo
a ter, assim, junto com o paciente, uma experiência que pertence aos dois.
O mesmo Platão, entretanto, no diálogo sobre As leis, afirma existirem dois
tipos de médicos: os que cuidam dos escravos e dos estrangeiros que, não
sabendo falar, são medicados em silêncio após detalhada observação, e os que
cuidam dos cidadãos que, sabendo falar, narram, numa linguagem mito-poiética
epopéica as origens e percursos, no corpo, daquilo que os fazem sofrer, daquilo
que é pathos.
Essa última forma de medicina, que encontra seus fundamentos no teatro
grego e na noção de cidadania predominante na Atenas de Péricles, é, em última
instância, uma retórica que analisa pathos, de modo a permitir ao orador suscitálo
ou pacificá-lo. Saber jogar com impulsos emotivos pertence à técnica retórica
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– e é provável que os retores tenham sido os primeiros a atribuir ao pathos este
sentido a que hoje chamamos psíquico. O estudo dos efeitos que o discurso
produz sobre os homens é que faz com que o pathos perca o seu sentido mais
amplo de fenômeno passivo (sentido que igualmente convém às percepções
sensíveis, como dirá Descartes) para vir a designar as percepções da alma. O
objetivo do orador, e, mais ainda, o do poeta, não consiste apenas em convencer
através de argumentos. É necessário, também, que ele toque a mola dos afetos,
e utilize os movimentos da alma que prolongam certas emoções. Desta forma, é
preciso então saber a propósito de que objeto determinado e por que disposição
determinada do autor se realizam estas variações afetivas.
Psicopatologia Fundamental
Em presença dessas posições, é possível, agora, passar a uma primeira
aproximação da posição da Psicopatologia Fundamental.
Trata-se, antes de mais nada, de uma posição clínica que encontra suas
origens no teatro grego do tempo de Péricles e na medicina de cidadãos praticada
em Atenas, nessa mesma época. Tanto o espectador como o médico de cidadãos
se inclinam, como na Psicopatologia Fundamental, diante de alguém que porta
uma voz única a respeito de seu pathos, de sua tragicomédia, mas, também, de
seu sofrimento, de suas paixões, de sua passividade. É clínica, portanto, porque
respeita o princípio da voz única que suscita experiência e terapia. Trata-se de
uma posição porque reconhece a existência de outras posições na polis dentre
as quais se destacam a do orthos e a do historiador. Essas posições nascem de
posturas corporais e essas posturas – verdadeiras formas de existência dos corpos
– engendram discursos – logos – que representam essas posições.
Na posição da Psicopatologia Fundamental, pathos – o sofrimento, as
paixões, a passividade – assujeitam o ser humano criando um tipo particular de
sujeito que também encontra suas origens no teatro grego do tempo de Péricles.
Neste sentido, tanto o sofrimento como as paixões e a passividade se apoderam
do corpo sem fazerem parte inerente dele. O pathos vem de longe e vem de fora
e toma o corpo fazendo-o sofrer. Até mesmo na contemporaneidade é essa a
noção que preside a definição de doença. O corpo, em si, não é doente. Ele é
natural. Por isso está sempre apto a ficar ou a cair doente, sendo possuído por
algo que vem de longe e vem de fora, seja um vírus, seja uma crise psíquica.
Mas o que vem de longe e vem de fora, introduzido no corpo aí brota dada a
sua condição de natureza. O psiquismo, o aparelho psíquico, é, na ótica da
Psicopatologia Fundamental, um prolongamento do sistema imunológico. Ele se
constitui graças à violência originária e é uma resposta defensiva do organismo
a ela. Pathos é sempre somático, ocorre no corpo; e a psique é, na tradição
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ARTIGOS
socrática, estritamente corporal não havendo, nunca, solução de continuidade
entre essas duas instâncias. (cf. Reale, 1994) I
Assim como a Psicopatologia Fundamental reconhece a existência de
múltiplas posições corporais-discursivas na cidade, ela pretende, também, que
os que ocupam outras posições na polis reconheçam a especificidade de sua
posição. Desde as suas origens, a cidade abriga a multiplicidade e esta só cresce
com os tempos. Além disso, a especificidade da posição da Psicopatologia
Fundamental não quer dizer, também, que se trata de uma postura rígida e sem
movimento. O psicopatólogo fundamental visita outras posições na cidade, assim
como e visitado por aqueles que ocupam outras posições. Isso e particularmente
verdadeiro na Universidade – uni(dade) na (di)versidade – onde, como propõe
Fédida, as posições devem ser explicitadas e mantidas para que a experiência
ocorra e se transforme em saber. (cf. Berlinck, 1997, p. 71)
Desde que a posição da Psicopatologia Fundamental é tal que se dispõe
sempre a escutar um sujeito que porta uma única voz que fale do pathos que é
somático e que vem de longe e de fora, ela é sempre objeto da transferência, ou
seja, de um discurso que narra o sofrimento, as paixões, a passividade que vem
de longe e de fora e que possui um corpo onde brota, para um interlocutor que,
por suposição, seja capaz de transformar, com o sujeito, essa narrativa numa
experiência. Esta palavra, aqui, adquire o sentido preciso de enriquecimento, ou
seja, a experiência é a possibilidade de se pensar aquilo que ainda não foi pensado.
Nunca é pouco repetir, a Psicopatologia Fundamental não ocupa o lugar do logon
didonai do discurso dos que estão sustentando uma posição irrepreensível. É por
isso que se diz que na posição da Psicopatologia Fundamental se produz
metapsicologia, ou seja, um discurso mito-poiético epopéico que é uma experiência
e que, como tal, é terapêutica.
Por todas essas razões, a posição da Psicopatologia Fundamental é assim
denominada para se distinguir de uma outra posição que é a da Psicopatologia
Geral. Enquanto esta rica posição é um discurso a respeito das doenças, das
formas corporais-discursivas que assumem o pathos, a Psicopatologia
Fundamental está interessada em suscitar uma experiência que seja compartilhada
pelo sujeito. Trata-se, portanto, de uma posição médica, no sentido grego desta
palavra, quando se refere ao médico de cidadãos. Por isso o psicopatólogo
fundamental deve se interessar vivamente pela Psicopatologia Geral e deve visitála
com a freqüência devida sem, no entanto, pretender habitar essa outra posição.
A descoberta do inconsciente freudiano como manifestação do pathos e
como algo que surge da violência primordial, bem como a conseqüente
metapsicologia que é conhecida por psicanálise é a casa mais confortável existente
na contemporaneidade para a Psicopatologia Fundamental.
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De fato, a psicanálise nasce e se desenvolve como uma Psicopatologia
Fundamental, mas com a morte de Freud e a subseqüente babelização da
psicanálise, a casa da psicanálise fica tão vasta e comporta tantas posições que
se torna necessário especificar, cada vez mais precisamente, qual a posição que
se ocupa nesta enorme mansão. Assim, por exemplo, o psicanalista Fabio
Herrmann, ao distinguir análise terapêutica e análise didática reconhece a
possibilidade de uma psicanálise de e para normais. (cf. Herrmann, 1996, p. 204).
Ora, a psicanálise didática parece não só se afastar da posição da Psicopatologia
Fundamental, mas, ao sugerir que a doença psíquica é para psiquiatras e
psicoterapeutas, a psicanálise, contendo um lugar para a Psicopatologia
Fundamental, não se confunde com ela. A Psicopatologia Fundamental só é
psicanalítica porque, apesar de psicanalistas, há, na casa da psicanálise, um lugar
para ela.
Realiza-se, assim, uma primeira especificação da posição da Psicopatologia
Fundamental que orienta, dirige os trabalhos que estão sendo realizados no –
Laboratório de Psicopatologia Fundamental do Núcleo de Psicanálise do Programa
de Estudos pós-Graduados em Psicologia Clínica da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo e, crescentemente, em outras Universidades brasileiras e
estrangeiras como atesta a Rede Universitária de Pesquisa em Psicopatologia
Fundamental.
Como primeira especificação de uma posição, este texto é um tanto
esquemático e categórico pois, solicita clareza e concisão. Com isso, pretendese
afirmar que o trabalho de especificação dessa posição está apenas no início e
requer um esforço permanente e sistemático de pesquisa que já vem sendo feito
por todos os que pretendem ocupá-la. De qualquer forma, a Psicopatologia
Fundamental faz parte de uma rica e honrosa tradição que trata do sofrimento
humano e, por isso, merece ser cultivada.
São Paulo, junho de 1997.
Resumos
Si pata los romanos “posición “ significaba un lugar adonde una persona
o cosa estaria colocada, para losgriegos Ia noción de posición era de naturaleza
mucho más relacional. Partiendo de Ia posición determinada por Ia postura dei
cuerpo se diferenciaban, por 10 menos, otras dos: Ia dei historiador que no
inventa, apenas escuchó Ias cosas por ahí, y Ia dei teatro que muestra el cuerpo
humano em su estado natural de pathos (sufrimiento).
Al considerar el psiquismo y el aparato psíquico como prolongamientos
dei sistema inmunológico y una vez que, según el autor; pathos es siempre
somático, la psiqué es – siguiendo la tradición socrática – estrictamente corporal.
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ARTIGOS
Es próprio pués de Ia Psicopatologia Fundamental reconocer Ia existencia de
múltiples posiciones corporales-discursivas e intentar que aquellos que ocupan
otras posiciones reconozcan Ia especificidad de su posición.
Partiendo dei concepto de posición y de sus desdoblamientos en pathos y
logos, el autor desarrolla su concepción de Psicopatologia Fundamental.
If for the Romans “position “ meant a place where a person or object would
lie, for the Greeks this notion was much more relational in nature. Starting from
the position determined by the posture of the body, there were at least two other
ones: that of the historian, who doesn't make things up but just heard about
them around and that of the theatet; which reveals the body in its natural state
of pathos (suffering).
When psychism and the psychic apparatus are considered as extensions of
the immunological system and once, according to the authol; pathos is always
somatic, the psyche is – following the socratic tradition – strictly physical. It is
thus proper of Fundamental Psychopathology to recognize the existence of –
multiple body-discourse positions and to try to have the specificity of its position
recognized by other positions.
Starting from the concept of position and its developments in pathos and
logos, the author presents his conception of Fundamental Psychopathology.
Bibliografia
BERLINCK, Manoel Tosta e SEINCMAN, Monica. “Entrevista com Pierre Fédida” in
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de Marcos Aarão Reis. Rio de Janeiro, Record, 1997.
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ARTIGOS
ano V, n. 4, dez/20 02
Ademir Pacelli Ferreira
Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., V, 4, 11-29
O ensino da psicopatologia:
do modelo asilar à clínica da interação*
A questão do ensino da psicopatologia é aqui abordada a
partir da retomada de elementos da história da constituição da
clínica médica e dos clássicos, até a constituição da psiquiatria
clínica. Neste percurso, analisa-se os instrumentos nascidos da
atenção cuidadosa para com o padecimento e, posteriormente, com
a conquista do domínio sobre a doença por meio da nosografia, onde
a marca pessimista do asilo tornou a clínica um exercício escolástico.
Propõe-se, então, um retorno à clínica contra o empiricismo e o
essencialismo clinicista.
Palavras-chave: Clínica clássica, psicopatologia, ensino,
psicopatologia fundamental
* Este texto surgiu de uma primeira versão apresentada no VI Encontro Científico da Rede
Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental – Petrópolis – set/2001.
Agradeço a Margarete Ferreira pela leitura e contribuições ao texto, e a Maria Lúcia
Gonçalves pela revisão do português.
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ano V, n. 4, dez/ 2 0 02
Introdução
Várias são as questões que envolvem o ensino da psicopatologia
e da psiquiatria. Pretendo, com este artigo, continuar o debate iniciado
no VI Encontro Científico da Rede de Psicopatologia
Fundamental, visando manter a interlocução e o interesse nesta área.
Apesar do título poder sugerir a idéia de uma epopéia histórica, não
se trata, na verdade, de uma análise histórica, mas sim da utilização
de alguns elementos da história que permitiram o surgimento da experiência
clínica para, então, revalorizá-la. A clínica constituída no final
do século XVIII ofereceu aos médicos alienistas um método de observação
e de organização da loucura num sistema racional. O clinicismo
atravessou longos períodos, desde o olhar puro (Foucault, 1977)
que, junto ao leito transformado em santuário da investigação, aliouse
ao dizer e organizou a sua experiência, delimitando a polissemia do
sofrimento no interior do corpo do indivíduo. Hoje, o estudo da psicopatologia
tende a tornar-se secundário na formação do psiquiatra,
já que o diagnóstico seria derivado da captação da presença estatística
de determinados sinais. Portanto, esta argumentação espera poder
sustentar o retorno à clínica, onde a psicopatologia geral e a psicopatologia
fundamental são convidadas a interagirem.
A partir de uma longa experiência de ensino e assistência em
uma unidade universitária de psiquiatria,1 encontrei, na proposição do
VI Encontro Científico da Rede, a oportunidade de iniciar o debate
sobre esta temática. Sua relevância se coloca logo de início pela carência
de bibliografia sobre o assunto, além disso, parece haver um
1. Unidade Docente Assistencial de Psiquiatria do HUPE da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (UDAP).
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ARTIGOS
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certo desencanto em relação ao estudo psicopatológico. A psiquiatria nasceu da
entrada dos médicos no asilo e do encontro com a psicologia clássica, que forneceu
os subsídios para a organização da psicopatologia. Mas procurou se manter
respaldada na autoridade moral e jurídico da medicina. Se a bipolaridade
(Kammerer, 1989) médico-psicológica se manteve por longos anos, com a hegemonia
da referência biotecnicista (Canguilhem, apud Americano do Brasil, 2001)
das últimas décadas, a formação psiquiátrica vem perdendo o interesse pelo psíquico
e pelo páthos (Caon, 2002).
Na formação do psicólogo, a disciplina de psicopatologia consta desde o
início da criação das faculdades de psicologia que, a partir da década de 1970,
expandiram-se em todo o país. Junto com o ideal clínico, a psicologia importou
também o modelo médico como ideal de formação do psicólogo. A disciplina de
psicopatologia tem sido lecionada quase exclusivamente por psiquiatras, até mesmo
porque, antes, não dispúnhamos de psicólogos capacitados para tal. Suponho
ter sido um dos primeiros psicólogos encarregados pela disciplina. Desde o início
de minha experiência, procurei aliar o ensino com a extensão junto à clínica
psiquiátrica. Trata-se de uma rica experiência interdisciplinar, já que, além do
curso de graduação, da supervisão de estagiários e de residentes de psicologia,
participo do atendimento ao paciente internado, do Hospital-Dia e do ambulatório.
Neste sentido, discutimos todos procedimentos clínicos: diagnóstico, programa
terapêutico, recursos técnicos e institucionais, internação e alta,
prognóstico e continuidade do tratamento externo.
No curso de psicologia, a psicopatologia foi dividida em Geral e Especial.
A primeira, nos moldes de Jaspers – um tipo de psicologia geral do patológico –
estuda os distúrbios das funções psíquicas, da personalidade e do comportamento.
A psicopatologia especial, equivalente da psiquiatria clínica, engloba os métodos
de classificação, propedêutica e nosologia psiquiátrica. Sabe-se que a nomenclatura
psicopatológica nasceu de uma experiência prática contínua nos manicômios,
sendo, portanto, essencialmente empírica. Seu ensino, tradicionalmente,
também foi desenvolvido pelo contato diário com casos clínicos, observações,
exames e intervenções práticas. No entanto, os estudantes de psicologia não dispõem
desta experiência clínica, o que torna mais difícil a aprendizagem da diferenciação
dos termos e conceitos psicopatológicos.
Hospital e hospício: um campo natural de ensino
No final do século XVIII, o hospital foi transformado em locus privilegiado
para o ensino médico. Esperava-se que daí surgissem as grandes lições –
através das doenças e da morte – ao permitir "descrever a história dos males, e
ensinar a arte de observar e tratar as doenças" (Foucault, 1977, p. 71). Foi a
partir da observação aguçada, e em profundidade, que se criou tanto a experiência
clínica quanto o discurso de estrutura científica sobre o indivíduo. A experiência
clínica "abriu" o "indivíduo concreto à linguagem da racionalidade,
acontecimento capital da relação do homem consigo mesmo e da linguagem com
as coisas" (Ibid., p. XIII). Se a doença do corpo foi domesticada no leito pela
racionalidade médica, no final do século XVIII, a loucura, por seu turno, encontrava-
se dispersa na urbis e no asilo. Os chamados asilos ou hospícios serviam
como espaços depositários daquilo que perturbava a pólis. Os médicos alienistas,
ao penetrarem nestes espaços, deveriam aí introduzir uma experiência de domínio
sobre a coisa da loucura que atiçava os sentidos, fornecendo-lhe uma estrutura
a partir da racionalidade médica. Estava fundado, então, o campo ideal para
a observação e catalogação das manifestações da loucura, ordenadas, aos poucos,
em famílias, gêneros e espécies, fundando uma prática que resultou na criação
da psiquiatria como disciplina médica.
Depois do advento dos psicotrópicos, os psiquiatras vislumbraram a possibilidade
de exercer suas práticas em consultórios, como já o faziam as outras
categorias médicas. Entretanto, se os neurolépticos favoreceram uma internação
mais curta, não conseguiram evitar o aumento das reinternações, já observadas
na década de 1950 e tornadas críticas na década de 1970 (Silveira, 1982), o que
favoreceu a expansão dos hospícios e a sua continuidade como lugar-depositário
da loucura na representação social. Desta forma, o espírito da segregação
aciona, automaticamente, a defesa da internação frente a qualquer expressão de
loucura. Talvez se defenda tenazmente a continuidade do hospício, devido a este
lugar social que ocupou e que indicamos anteriormente. Esta hipótese pode justificar
a intensa reação emocional de seguimentos da sociedade e de profissionais
e professores da área psiquiátrica, contra o projeto de reforma da assistência
psiquiátrica que visa acabar com a segregação e limitar o período de internação.
Além da defesa de interesses econômicos de corporações, é como se estivesse
em jogo a própria identidade profissional. Para alguns professores, o possível
fim dos manicômios era entendido como o fim do ensino da psiquiatria.
Se a invisibilidade da loucura dificultava a clínica do olhar, o asilo tornouse
o locus da visibilidade exibindo as várias espécies nosográficas. Foi neste campo
de visibilidade que os alienistas que, a partir de Pinel, diferenciaram os alienados
do resto dos asilados e construíram um corpo de descrições que derivaram na
nosografia que herdamos. Todo este esforço tinha a finalidade de garantir uma
nova especialidade médica – a psiquiatria. Mas esta clínica das descrições minuciosas
trazia também, em seu bojo, a marca pessimista do asilo. Esta prática
psiquiátrica tão cara aos alienistas ávidos por captar, identificar, descrever e di-
ferenciar entidades mórbidas, ficou caracterizada como simples exercício acadêmico,
pois nela, o diagnóstico negava a própria práxis terapêutica. Jung (Correspondência
Freud/Jung, 1986, p. 15), em suas Memórias, descreve o famoso
Burgolzli dirigido por Bleuler, e onde foi chefe de clínica por vários anos, como
a cultura do provável, do mediano, do convencional e destituído de sentido, onde
se renunciava ao estranho e ao significativo, e o extraordinário era reduzido ao
banal. Por conseguinte, "havia apenas (...) estreitos horizontes opressivos e o
deserto infindo da rotina".
O mal-estar no ensino psiquiátrico: sem ver, sem auscultar, sem apalpar
Este tripé acima citado, tornou-se instrumento sensível de aproximação e
exame da clínica médica, apesar de que hoje, muitas vezes o médico prefira pedir
um ecocardiograma antes mesmo da ausculta do coração (Chenieaux Jr.,
2002). Para a psiquiatria, desde o início, estes instrumentos não eram de grande
utilidade: como ver, como apalpar e como auscultar os sintomas psicopatológicos?
Na minha experiência em um hospital geral, onde atuei junto a uma equipe
de clínica médica, surpreendia-me a ênfase dada à prática de ver casos. A metodologia
de discussão dos casos em atendimento com os residentes de medicina
foi desqualificada em detrimento da ênfase em ver o maior número possível
de casos.
O modelo de formação dos alienistas no século XIX seguia a mesma tradição
da clínica médica constituída no final do século XVIII. Nesta, o candidato
deveria estar ao lado do grande mestre e seguir os seus passos no dia a dia,
observando e examinando os doentes para aprender a detectar os mínimos sinais,
a catalogá-los e conceituá-los. Nesta clínica do olhar (Foucault, 1977), o
aspirante deveria desenvolver a perícia da observação, a partir do treinamento
diário junto ao mestre. Já no final do século XIX, esta clínica do olhar ganhou
instrumentos competentes de produção e demonstração em cena das alterações
psíquicas. Charcot, por exemplo, se consagrou como o mestre das histéricas,
por meio das demonstrações sensacionais dos mecanismos sugestivos de produção
dos seus sintomas.2 Mais tarde, Clérambault [1920](1999), dando continuidade
à prática de ensino da escola alemã, tornou-se perito na apresentação de
2. Freud, citado por Quinet (2001, p. 84) assim caracteriza Charcot: "... ele não negligenciava nada
do que pudesse penetrar em seu espírito pelos olhos, ele não falava jamais de um paciente sem
apresentá-lo a seu auditório, ele não descrevia jamais um sintoma sem fazê-lo ao mesmo tempo
constatar de visu".
pacientes. Foi aí que Lacan o encontrou e o nomeou seu mestre. Mesmo depois
de tornar-se psicanalista, Lacan continuou a praticar este método no ensino
da psiquiatria, inspirando alguns seguidores que, hoje, estão retornando aos hospícios
para desenvolverem a prática da apresentação de pacientes.
Mas este ensino que ganhou legitimidade e eficácia do ponto de vista operatório
(Pereira, 1998), e que levou a psiquiatria a ser considerada como primeira
especialidade médica (Foucault, apud Americano do Brasil, 2001), teve, por
outro lado, dificuldades de provar a consistência de seu objeto frente à medicina
que a respalda. A partir da impotência de detectar a loucura por meio dos sinais
sensoriais, os médicos procuraram traçar uma outra geografia. Foi necessário
inventar uma cartografia da alma e de suas faculdades para fundar a disciplina
da psicopatologia. Esta vem suprir a carência de uma anátomo-fisiologia para os
novos peritos. Mas se os conceitos operatórios foram eficazes na condução da
propedêutica psiquiátrica, faltou-lhes, por outro lado, uma consistência epistemológica,
por isso o ensino se caracteriza mais como um treinamento. Como
afirma Americano do Brasil (2001, p. 82), "... a pedagogia e a experiência são
os meios que operacionalizam a ação da formação psiquiátrica, mas não se transmite
a sustentação epistêmica deste campo".
Ao me contrapor à redução da prática clínica à captação dos sintomas através
do visível ou do sensorial, não estou refutando a análise semiológica e a importância
dos instrumentos propedêuticos, mas afirmando que essa redução
empobrece a visão sobre o sofrimento humano. Por isso, enfatizo a importância
da vivência e da experiência com o doente na formação do clínico e do psicopatólogo
(cf. Caon, 2002). Na ótica positivista, voltada para a percepção da presença-
ausência de sinais previstos nos código classificatórios, torna-se difícil a
discussão dos elementos subjetivos. Se a psicanálise e a fenomenologia puderam
manter uma longa interlocução, a partir do domínio do modelo estatístico
do DSM-IV,3 torna-se impossível esta contribuição, pois tudo que é subjetivo é
visto como perturbador ao modelo da quantificação. Até mesmo diferenciar idéia
delirante de idéia deliróide; uma alucinação verdadeira de uma pseudo-alucinação,
torna-se supérfluo, já que os antipsicóticos irão atuar sobre esses sintomas
do mesmo jeito (cf. Cheniaux Jr., 2002)
Se a clínica médica nasceu da escuta atenciosa das queixas do doente, com
o estabelecimento da nosografia e de um olhar clínico diferenciador, o médico
3. Surgido em 1952 nos Estados Unidos, o Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos
Mentais (DSM-I) visa, desde o início, à universalidade, ampliando seu domínio dos limites da
Associação Psiquiátrica Americana para o mundo. Do processo de elaboração e sistematização
continuado resultou as novas versões: DSM-II (1968); DSM-III (1979); DSM-III-R (1986) e
DSM-IV (1994) (Ionescu, 1997).
passou a ter um domínio sobre as doenças e afastou-se mais do doente. Com
o olhar perscrutador, visa, então, captar os sinais que irão compor uma determinada
doença. Sua perícia passa a ser medida por esta capacidade de objetividade.
Este domínio transformou o médico em mestre das doenças. Nesta
perspectiva, a fala do paciente só tem sentido se é possível decodificá-la em
uma semiologia médica. O que é subjetivo, como as queixas dos neuróticos, que
não possuem esta objetividade, sempre criaram um mal-estar, como as histéricas
do final do século XIX, que desafiaram o médico neste lugar de mestre. Com
suas solicitações e com seus sintomas funcionais, pareciam provocar e tapear o
médico.
O paciente em cena: o lugar da ilustração
Neste domínio de um saber sobre as doenças, introduziu-se o ensino prático
através da apresentação de pacientes. Este artifício de transmissão da psicopatologia
ainda desperta controvérsias. Diferencio aqui a prática de entrevistas
clínicas realizadas pelo professor, juntamente com os residentes ou especializandos
responsáveis pelo atendimento dos pacientes entrevistados, daquelas aulas para
turmas de alunos de graduação. Nestas, os alunos não possuem nenhum vínculo
com o paciente. Trata-se de um exercício meramente didático, onde não há
lugar para a produção de uma fala significativa do sujeito, à medida que este é
reduzido à condição de objeto de estudo. Em sua práxis de longos anos, Nise da
Silveira instituiu uma outra perspectiva ética de ensino e de relação com o doente
mental, onde o respeito pelas vivências e produções subjetivas não permitia
tratar o paciente como objeto. Na minha experiência de mais de duas décadas
de atividades docentes-assistenciais na instituição psiquiátrica, não considero que
haja ganho nestas apresentações de pacientes, seja para o tratamento, seja para
o ensino-aprendizagem. Tenho encontrado vários professores e psiquiatras que,
também, são críticos deste recurso. Em conversas com alunos de medicina, uma
grande parte ainda afirma não ter se beneficiado por este recurso didático. Muitos
afirmam, ainda, que esta experiência aumenta o preconceito à chamada doença
mental. Entendo que esta prática favorece a alienação de todos os envolvidos,
o doente, o aluno e o professor, à medida que aborda um objeto de estudo sem
nenhum compromisso ético (terapêutico) com o sujeito em sofrimento.
Apesar das justificativas éticas (morais) que sustentam este recurso, à medida
que visaria o ensino, o esclarecimento do caso e o progresso da ciência e
da técnica, no que se refere ao ensino da psicopatologia, estas justificativas não
nos convencem. Observo, com freqüência, o surgimento de reações de descon-
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fiança e de oposição, após a exposição de pacientes nestas aulas. Queixam-se de
se sentirem como ratos de laboratório, de estarem ali só para estudo e de não
se sentirem ajudados em seus sofrimentos pelos profissionais.
Logo que me ingressei como professor, fui encarregado de organizar um
programa prático para esta disciplina de psicopatologia. Sugeri, então, que os
alunos visitassem a enfermaria, procurando, ali, manter contato e algum nível
de convivência com as pessoas internadas. Estimulamos ainda que mantenham
uma conversa informal e a participação em atividades criativas e grupais. Em
nossa avaliação, é possível estabelecer algum contato significativo neste tipo de
experiência, o que pode resultar no desenvolvimento de concepções e de representações
menos estereotipadas sobre o doente mental. Neste tipo de proposta,
o que primeiro chamou a nossa atenção foi o confronto entre as imagens coletivas
da loucura, que povoavam o imaginário dos alunos, com a experiência da
convivência. Posso afirmar que, para esses alunos, a surpresa maior foi a descoberta
de que, em vez de loucos, encontravam-se ali pessoas com vida subjetiva
e objetiva, com desejos, valores, conflitos, qualidades e defeitos.
Hoje, lembrando do único contato que tive com este recurso, vejo que foi
bastante estranho. No início dos inícios (1973), no Centro Psiquiátrico Pedro
II, atual Instituto Nise da Silveira, entrei num auditório para assistir uma palestra
e me deparei com uma aula com apresentação de paciente. Com uma platéia
em torno de cinqüenta pessoas, depois das preliminares – suponho que considerações
sobre a paranóia ou esquizofrenia paranóide – chegou o momento da cena
anunciada, adentra no recinto uma enfermeira conduzindo um homem até o palco;
altivo, esguio, gestos anunciadores e concentrado em seu papel. Ele assumiu,
então, a palavra, convocando os estudantes a escutarem a sua paródia
delirante sobre seu projeto de reforma do mundo. Falou durante uns vinte minutos,
num discurso encadeado e pronto para a platéia, até que o mestre de cerimônia
(o psiquiatra) interrompeu a sua preleção, agradecendo-lhe e orientando
a enfermeira para levá-lo de volta à enfermaria.
Satisfeito com a sua façanha, o ocupante do discurso do mestre fez suas
considerações, indicando os sinais que comprovavam o sistema delirante do paciente.
Saí dali com a impressão de que o objetivo visado pelo professor era o
de demonstrar que as idéias socialistas e os ideais revolucionários eram frutos
de delírio.4 O papel da platéia estava bem delineado, tratava-se do lugar do olhar,
função de contemplar a cena ou a encenação do ensino prático.
4. As reclamações, denúncias e análises críticas, durante o milagre brasileiro da década de 1970,
eram vistas como atitudes querelantes dos pessimistas. Juntamo-nos ao escritor português
Saramago, ao defender a importância dos pessimistas, que não se deixam cair no engodo do
otimismo e se mantêm críticos frente ao entusiasmo ilusório dos que estão levando vantagens
neste sistema tão desvantajoso para a maioria.
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Também Vertzman (1996) parte da crítica à apresentação de pacientes para
refletir sobre a transformação do ensino. Ilustra sua crítica com duas cenas onde
se viu como espectador numa e como professor, noutra. Na primeira cena como
aluno, descreve as fantasias dos alunos frente à expectativa da entrada do novo
paciente, onde, diante do acontecimento fetiche do ensino prático, o que predominava
nas representações da platéia, segundo ele, era a curiosidade dos alunos
sobre a próxima bizarrice a que iriam assistir.
Na segunda cena, Vertztman relata sua experiência como professor. Nesta,
com um pequeno grupo de estudantes de psicologia, ele reproduz o ensino
prático, apresentando uma mulher que se encontrava internada. A paciente quase
não fala. Com esforço, queixava-se de que já não tem lágrimas para chorar e
que sua vida acabara há muitos anos. O professor, no caso o próprio, insistia
para que os sintomas que compõem o quadro de depressão aparecessem e se
presentificassem no aqui e agora, visando à ilustração de sua aula prática. Para
as várias perguntas de praxe, a paciente responde de forma arrastada. Ao término
da sessão-aula, uma aluna se arrisca a falar sobre seu mal-estar frente a esta
prática, onde não há possibilidade de estabelecimento de uma comunicação autêntica
com o paciente, já que este teria que falar de sua intimidade para pessoas
desconhecidas, com as quais não tinha nenhuma relação. Agora, ironizando, este
autor expõe os argumentos de que se utilizou para tentar convencer os alunos
da justeza daquele artifício de ensino: o paciente estaria ciente de estar se tratando
numa instituição de ensino, onde os estudantes ali se encontram para aprender.
A apresentação poderia ser útil também para a paciente à medida que falaria
para mais gente sobre o seu sofrimento. Para alunos, esta seria uma forma de
aprender – escutar ao vivo o que os pacientes falam. Por último, apela ainda
para a possibilidade dos alunos estabelecerem um vínculo com os pacientes, o
que poderia servir de instrumento de ensino e tratamento.
Para esse autor, cada orientação teórica teria um posicionamento em relação
a esta prática. Na fenomenológica, pela crença no "posicionamento intencional
da consciência para um fenômeno mórbido, espera-se que possa emergir
algo de sua essência, um fenômeno que se mostraria com poucas modificações
em qualquer situação, desde que o método fosse aplicado corretamente" (p. 118).
Já na orientação positivista, haveria a crença na presença de regularidades orgânicas,
independentes do contexto. Aqui, a essência e a natureza dos eventos não
seriam passíveis de trato pela ciência. O que deveria, então, ser ensinado nestas
visões, seriam os traços comuns que os pacientes apresentam, já que os aspectos
singulares não caberiam no método científico (Ibid.).
A terceira orientação é a psicanálise, que contrapõe a este tipo de prática,
já que a noção de transferência tornaria o ensino incompatível com este modelo.
Mas, como já assinalamos, seguindo a tradição lacaniana, alguns psicanalistas
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sustentam esta prática de ensino. Segundo Quinet (2001, p. 9), haveria aí uma
convergência entre psicanálise e psiquiatria, pois ao acolher a fala do sujeito
com o auxílio dos conceitos psicanalíticos, contribuiria para orientar o diagnóstico
e o tratamento. Este autor parte do modelo de apresentação de Charcot,
onde o paciente era tratado como objeto de observação e de exposição, para
contrapô-lo ao método lacaniano, onde a prática de apresentação de pacientes
teria se transformado em "encontro com um analista, com funções de ensino,
diagnóstico, prognóstico e de orientação terapêutica a partir de uma clínica do
sujeito inconsciente" (p. 86). Afirma ainda que, na apresentação de Lacan, não
se tratava de mostração e ilustração de quadros clínicos, mas de entrevista, encontro,
onde o analista seria ensinado.
Caon (2002) também afirma, a partir de sua prática de vários anos, que a
apresentação psicanalítica de pacientes proporciona verdadeiras aulas de psicopatologia,
à medida que o paciente seja reconhecido do lugar de sua constituição
de sujeito desejante. Penso que a apresentação de pacientes não é a forma
mais interessante do analista entrar na instituição psiquiátrica. Temo que essa
prática possa retomar o clinicismo. O próprio Quinet (2001) assinala a falta das
apresentações clássicas de Leme Lopes, exemplo este do clinicismo e do apego
ao hospício.
Para Vertzman (1996), este tipo de ensino levaria às seguintes conseqüências:
primeiro, implicaria dizer aos alunos que podemos fazer os pacientes falarem
de seu sofrimento, sem que isto se reverta terapeuticamente a seu favor e
que esta conversa, não traria conseqüências para a sua evolução. O enunciado
que sustenta esta prática seria: "... pode-se travar contato com o que chamamos
de doença mental a partir de uma posição de puros observadores" (p. 119).
Este ponto seria crítico, pois é impossível não se colocar numa posição moral
diante do sofrimento psíquico do outro. Seria, portanto, um equívoco teórico, já
que esta posição não consideraria a influência do contexto para a produção dos
conteúdos, o que favoreceria, e até reforçaria, os estereótipos sobre o doente
mental. Vemos, pois, que o rompimento com a prática clássica de ver pacientes
implica novas proposições para o ensino. Podemos afirmar com Vertzman, que
um bom ensino se faz num bom serviço.
Historicamente os asilos serviram para sistematizar a formação médica, que
era precária até o século XVIII. Com a sua sistematização, houve um grande avanço
em relação ao conhecimento das doenças e da terapêutica. Mas com a reclusão
do doente e com a interiorização da doença no corpo do indivíduo, houve
uma redução da compreensão da dimensão do sofrimento, e também dos seus
fatores etiológicos. O modelo clinicista sofreu os efeitos da clausura ao centrarse
na doença. Com isso, perdeu-se muito da dimensão da vida e dos fatores que
sustentam a saúde. Pode-se observar a resistência em relação aos projetos de
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saúde pública, como foi no Brasil em relação aos projetos sanitaristas, onde
Oswaldo Cruz teve que organizar um verdadeiro exército para higienizar o Rio
de Janeiro. Hoje, quando várias práticas demonstram outras possibilidades de
abordar o sujeito em sofrimento mental, cabe ao ensino da psicopatologia, encontrar
outros métodos para abordar o sujeito em interação e não mais o indivíduo
isolado.
Portanto, a transformação da prática de ensino envolve uma mudança na
postura ideológica e ética que a sustenta, onde é exigido que o outro seja pensado
em sua subjetividade e alteridade (Ferreira, 2000). O que engloba os vários
profissionais que atuam na instituição, aos quais são reservados papéis geralmente
subalternos e compartimentados. Trata-se, então, da possibilidade de se
convocar a todos para assumirem seus lugares no elo terapêutico, onde o aluno
de graduação deve também ser incluído. Ao contrário da posição clássica, deverá
ser dito ao aluno que "tudo o que ele fizer ou disser, mesmo só observando,
terá conseqüência para alguns sujeitos particulares ou para o serviço" (Vertzman,
1996, p. 120).
Diferentemente do leito hospitalar, a loucura vazava e extravasava no hospício,
inundando os espaços e os sentidos. Para os alienistas, era um desafio
conter esta polissemia na recém-inaugurada racionalidade médica. A apresentação
de pacientes recortava na massa indiferenciada do hospício, um espaço de
separação, para que o professor pudesse apresentar para os alunos as manifestações
típicas das doenças no indivíduo. Respondia, na verdade, a uma demanda
da formação clínica do psiquiatra que, em grande número, acorriam aos famosos
hospícios europeus.
Se a alteridade do migrante, do louco, do índio, do negro ou do outro, é
somada no negativo, torna-se difícil imaginar que seja possível alguma troca,
é como se o outro não fosse também um eu, como foi com a representação
do índio sem alma. Nesta perspectiva etnocêntrica, pode-se fazer qualquer coisa
com este outro, já que ele não é circunscrito pela ética do dominante. A Europa
foi violenta, tanto com os loucos quanto com os milhões de índios que
foram dizimados no continente americano (Todorov, 1991; Ferreira, 1999). Recusado
em sua diferença, o louco foi destituído da razão e a loucura de sentido.
Sendo, portanto, excluído da interlocução, e sua fala singular deixou de
ser escutada como mensagem do eu e do outro. Tornou-se mero objeto de captação
de sinais-sintomas, comprovantes da sua não existência compartilhada.
Assim, para incorporar o doente mental ao núcleo identitário ("nós, todos aqueles
que pertencem ao mundo dos falantes") (Vertzman, 1996, p. 121) há que se redimensionar
os valores de inclusão e exclusão. Se a modernidade criou as cidades
abertas, por outro lado estabeleceu rigidamente a delimitação dos pertencentes
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e dos excluídos. Para os designados como doentes mentais, essa divisão foi terrível.
Na ótica organicista, o paciente é tratado como um corpo físico ou anatômico,
porque não se crê ser possível estar em jogo um corpo discursivo no apelo
que este faz ao outro. Naquilo que se escuta da chamada loucura ou do delírio,
muitas vezes o que se solicita é o reconhecimento de uma diferença (cf. Mannoni,
1976). O redimensionamento da comunicação com o psicótico exige a mudança
do estatuto da loucura como alteridade radical e como sem sentido. O
que não faz sentido é a exclusão de um pólo na comunicação, pois só é possível
a comunicação onde o eu e o outro vivem sob o universo simbólico humano e,
por tudo que sabemos, o psicótico continua bastante humano.
Psiquiatria e psicanálise: interseções e suplementações
A psicanálise nasce no campo da medicina e a partir do intrincamento do
campo neuropsiquiátrico não diferenciado do final do século XIX. Freud teve
sua curta experiência psiquiátrica orientada pelo clássico Meynert, no Hospital
Geral de Viena (Pereira, 1998), além de sua estadia com Charcot e num hospital
infantil. Ao iniciar sua clínica privada, herdara uma nomenclatura ainda pouco
diferenciada das doenças mentais pré-kraepelinianas. Era leitor de Griesinger, clínico
que descreveu magnificamente a melancolia (Almeida, 1999) e mais tarde
se inteira da nosografia de Kraepelin. Inicia sua interlocução com Bleuler-Jung,
com quem troca impressões constantes sobre as psicoses e sobre casos difíceis
de diferenciação diagnóstica (Freud/Jung, 1986). Freud prestou importante contribuição,
ao criar um corpo de conceitos precisos para reconhecer a histeria e
a conversão histérica, além de possibilitar a diferenciação clara da neurose obsessiva
e da angústia, que se achavam imbricadas em síndromes pouco diferenciadas.
Também a concepção de esquizofrenia de Bleuler sofrerá os efeitos da
experimentação da psicanálise na clínica psiquiátrica (Pereira, 1998), principalmente
a partir dos experimentos e interlocuções dentre Jung e Freud (Freud/
Jung, 1986).
Durante muito tempo esta interlocução da psicanálise com a psiquiatria,
iniciada pelos mestres, continuará. Foi somente após o quarto tempo da psiquiatria
(Lantéri-Laura, apud Americano do Brasil, 2001, p. 2), que os moldes clássicos
da clínica sofreram maiores reveses. Com o advento da psicofarmacologia
no início da década 1950; a hegemonia da DSM-III, a partir da década de 1980,
e com o fenômeno da globalização neoliberal, a psiquiatria foi sendo dominada
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pela orientação operacional.5 Como afirma Roudinesco, citada por Quinet (2001,
p. 8), a psicanálise serviu de cimento para a elaboração da nosologia psiquiátrica
durante trinta anos, mas foi rejeitada em prol dos psicotrópicos e dos modelos
das novas mitologias cerebrais e do DSM-IV. Ao afirmar-se ateórico, este
sistema busca uma purificação ideológica para livrar-se do legado freudiano
(Pereira, 1998, p. 70). Como afirma Lantéri-Laura (1989), este a-teórico é, na
verdade, uma doxa, onde o empirismo é tomado como nova teoria.
Freud sempre enfatizou a importância da psicanálise para ajudar a psiquiatria
a aprofundar a compreensão do psíquico e a superação de seu caráter meramente
descritivo. Assinala (Freud, 1916, p. 302) que mesmo sendo impotente
terapeuticamente, os benefícios da pesquisa poderiam advir, onde "cada pequena
parcela de conhecimento se transformaria em poder terapêutico"; afirma ainda
que "não há nada na natureza da prática psiquiátrica que possa se opor à
psicanálise, a não ser os psiquiatras" (p. 301). É na prática clínica onde esta
interlocução é exigida. Figueiredo (1999) propõe que a relação da psicanálise com
a psiquiatria seja uma relação de suplementaridade – acrescentar algo, ir além.
O trabalho do psicanalista viria suplementar o trabalho do psiquiatra, uma vez
que "valoriza a palavra do paciente mesmo que esta não apresente a coerência
exigida para uma conversa (...), no sentido de ajudar ao sujeito se situar em sua
ação, seu delírio, ou seu sintoma. Há um valor de verdade na fala que deve ser
reconhecido" (p. 88).
Quinet (2001) procura ressaltar os pontos de convergência entre a psicanálise
e a psiquiatria. Seguindo Freud, ele afirma a necessidade da continuidade
destas práticas, pois ao seguir meramente os manuais de diagnóstico e prescrever
a substância estabelecida pelas neurociências, o psiquiatra estaria "pondo em
risco a existência da clínica psiquiátrica" (p. 9). Com Lacan, Quinet (p. 10) enfatiza
a participação da psicanálise na formação do psiquiatra, para que em sua
clínica ele deixe surgir os fatos subjetivos. Se houver na prática psiquiátrica uma
atenção para as manifestações do inconsciente, do desejo, da tristeza, da angústia
e dos sintomas em geral como manifestações subjetivas, haveria aí uma chance
de convergência entre as duas.
5. O sistema operacional pretende que os termos derivem da própria ação. Segundo Ionescu (1997,
p. 22), são critérios descritivos, com definições precisas e de fidelidade interjuizes. Pereira
(1997, p. 109) exemplifica esta forma de proceder com o exemplo paradigmático da síndrome
do pânico, cujo diagnóstico é definido a partir da eficácia da imipramina. Esta categoria "reunia,
sob critérios empíricos, operacionalmente organizados, aqueles pacientes cujos sintomas eram
suscetíveis de melhora com tratamento à base de imipramina".
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Para Pereira (1998), a psicanálise vai confrontar as principais correntes
psicopatológicas, ao instaurar a dimensão da subjetividade no centro da psicopatologia.
Primeiro o empirismo, já que a psicanálise rejeita a idéia de isenção
do observador, ao afirmar que "não há fato a observar, pois o que está em questão
não são os eventuais sintomas do sofrimento anímico, mas um discurso pronunciado
em torno de uma queixa de falta de gozo" (p. 72). Quanto à
fenomenologia "vai contestar a possibilidade de qualquer compreensão da dor
do outro, pois, naquilo que tem de essencial, ela é totalmente irredutível às minhas
próprias imagens do sofrer (...)" (p. 72).
A partir de todas estas considerações, depreendemos que a psicanálise é a
interlocutora privilegiada da psicopatologia fundamental.
Psicopatologia Fundamental:
a pesquisa inclinada para o sujeito do páthos
A criação de Laboratório de Psicopatologia Fundamental surgiu na Universidade
Paris VII, com Pierre Fédida, há mais de trinta anos e inspirou a experiência
brasileira liderada pelo professor Manoel Berlinck. Em 1995, Berlinck
criou o primeiro Laboratório no Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia
Clínica da PUC de São Paulo. Em 1997, ele teve a generosa iniciativa de
lançar uma chamada aos professores universitários interessados pela área e, fundou,
assim, a Rede Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental (Berlinck,
2000).6 Consideramos este projeto bastante promissor e seus frutos podem
ser avaliados pelos encontros científicos, congressos e publicações já realizados.
O primeiro ponto que assinalamos é o ganho de autonomia do campo de
ensino da psicopatologia, no sentido de liberar-se do espaço de reclusão. Como
assinalamos acima, este ensino tem a longa tradição dos hospícios. O segundo
ponto a destacar relaciona-se com a criação de laboratórios de pesquisa nos espaços
universitários. O compromisso com a pesquisa poderá trazer importantes
contribuições, posto que, nas últimas décadas, houve um estacionamento da pesquisa
psicopatológica. Já se pode ter acesso a uma produção relevante neste sentido,
seja através da Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental,
que já está no terceiro ano, seja pelos livros que vêm sendo lançados.
Para conceituar a psicopatologia fundamental, Berlinck (2000) faz um retorno
à Grécia antiga, visando resgatar a potência do conceito de páthos. De
páthos deriva sofrimento, paixão e passividade, desta forma, a psicopatologia
6. Transformada, em 2002, em Associação.
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fundamental "está interessada num sujeito trágico que é constituído e coincide
com o páthos, o sofrimento, a paixão, a passividade" (p. 18). A condição de
paciente surge justamente por este submetimento. Há um sujeito tocado por algo
que desloca o lugar de domínio, colocando o sujeito em movimento, de uma indeterminação
a uma nova posição que depende da intervenção de um agente. "O
páthos é sempre provocado pela presença ou imagem de algo que me leva a reagir.
Ele é o sinal de que eu vivo na dependência permanente do Outro" (p. 20).
A referência para definir a psicopatologia seria o sofrimento ou a paixão,
no sentido de uma passividade que "porta em si mesmo a possibilidade de um
ensinamento interno que não ocorre a não ser pela presença de um médico ou
terapeuta" (p. 21). Berlinck afirma a positividade do páthos por envolver um
estado que produz demanda. Ele destaca a importância do estudo dos efeitos
do discurso sobre os homens, para que seja possível "fazer com que o páthos
perca o seu sentido mais amplo de fenômeno passivo para vir a designar as percepções
da alma (p. 22).
Depreendemos daí, acompanhando este autor, que psicopatologia fundamental
é uma posição em que o terapeuta se inclina diante de alguém que porta
uma voz única a respeito de seu páthos, sempre objeto da transferência: "de um
discurso que narra o sofrimento, as paixões, a passividade que vem de longe e
de fora e que possui um corpo onde brota um interlocutor que, por suposição,
seja capaz de transformar, com o sujeito, essa narrativa numa experiência" (p. 23).
Neste sentido, diferenciar-se-ia da psicopatologia geral, pois nesta, teríamos
um discurso a respeito das doenças, das formas corporais-discursivas que
assumem o páthos, enquanto a psicopatologia fundamental estaria interessada em
suscitar uma experiência que seja compartilhada pelo sujeito (Ibid.). A potencialidade
do sofrimento e do submetimento do páthos e da paixão perde seu valor
ao ser reduzida ao significado de enfermidade e de defeito (Caon, 2002).
Retomando Berlinck e Fédida, Pereira (1998, p. 74) enfatiza a relação da
psicopatologia com a paixão ou páthos grego, onde o sofrimento comporta a
possibilidade de transformar–se em sabedoria na medida em que possa "ser escutado
por um outro que sustente a palavra do sofredor até que ela atinja seus
extremos de auto-engendramento de um sujeito". Portanto, a psicopatologia fundamental
visa trabalhar uma clínica que "resgate da paixão e do sofrimento sua
capacidade geradora de sabedoria" (p. 75).
Entendemos que o caminho apontado pela psicopatologia fundamental, ao
propor este campo de pesquisa, que se inclina sobre o sujeito do páthos e procura
resgatar a dimensão de implicação subjetiva na constituição do sofrimento,
contrapõe-se ao domínio hegemônico dos DSM, que reduzem o psicopatológico
aos quadros sindrômicos descritos em forma de tabelas. Do ponto de vista do
ensino, acreditamos que, por meio dos núcleos de pesquisa (Laboratórios), seja
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possível criar novas condições de transmissão, sustentadas em metodologias com
bases epistemológicas bem fundamentadas. O ensino clínico deve ser feito a partir
da experiência clínica, onde os serviços de psiquiatria – não somente a clínica
da internação, mas também a clínica aberta, sem hospício e sem reclusão –
podem funcionar como importantes campos de prática e transformação da prática,
através do compromisso dos alunos com a terapêutica. Ao mesmo tempo,
é fundamental refletir sobre a história da psiquiatria e das representações sociais
que reforçam a exclusão do louco e da loucura. Recolocar em circulação esta
alteridade excluída, é resgatar uma importante dimensão obliterada de nossas práticas
sociais, o que, certamente, empobreceu nossa humanidade.
Considerações finais
Não é fácil estabelecer códigos lingüísticos que possam transmitir conceitos
intercomunicáveis em psicopatologia. A comunidade científica encontra muitas
dificuldades para estabelecer parâmetros comuns. Para se fazer diagnóstico em
medicina, foi necessário que as doenças estivessem definidas. Esta condição parece
ter sido preenchida pela psiquiatria, por meio das descrições minuciosas dos
quadros nosográficos dos clássicos e que foram sistematizados por kraepelinianos
no final do século XIX. Mas este é o primeiro dos três estágios que acompanham
a epistemologia médica (Kammerer/Wartel, 1989). O segundo estágio, de
localização do substrato anatômico, se foi reconhecido em alguns quadros – síndromes
focais – muitas destas deixaram de ser matéria psiquiátrica e passaram
para o campo da neurologia. Quanto ao terceiro, precisar o agente etiológico,
sempre foi problemático. Com a PGP, a medicina cumpriu suas etapas, mas o
tratamento etiológico não é psiquiátrico e a demência paralítica não é modelo
para a esquizofrenia.
Diante das dificuldades com o modelo da etiologia, o pragmatismo americano
assumiu a dianteira neste sentido, ao formular amplo intercâmbio entre os
psiquiatras para criar parâmetros universais e consensuais. A definição empírico-
pragmática das entidades psicopatológicas, que resultou no Manual de Diagnóstico
e Estatística da Associação Psiquiátrica Americana, atual DSM-IV,
tornou-se hegemônica (Pereira, 1998; 2000). Para atingir sua meta de estabelecer
um acordo sobre as categorias diagnósticas, esta corrente abriu mão da idéia
de entidade mórbida e do critério etiológico. Os diagnósticos passam a ser meras
convenções de caráter pragmático. "Não se trata mais de tentar exprimir ou
descrever a essência do sofrimento humano, nem mesmo especular sobre suas
possíveis determinações" (Pereira, 1998, p. 62).
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A psiquiatria sempre buscou a autoridade da medicina para sua sustentação
sociojurídica, a tolerância da aproximação com a psicanálise ocorreu pela
autoridade que esta ganhou no século XX. Houve também a necessidade de incorporar
suas contribuições, tanto as teóricas quanto as terapêuticas, sobre as
neuroses, pois a psiquiatria do final do século não as reconhecia e não tinha o
que fazer com elas. A partir dos psicotrópicos, as neuroses também vão entrando
no campo dos tratamentos sintomáticos e os médicos começam a querer
explicá-las pelo modelo fisicista. Mas se o psiquiatra seguir meramente este modelo
e os manuais de diagnóstico, prescrevendo simplesmente as drogas estabelecidas
pelas neurociências, ele estaria colocando em risco a própria existência
da clínica psiquiátrica (Quinet, 2001, p. 9), até mesmo porque qualquer médico
receita psicotrópico. Sem uma reflexão mais aprofundada, os psicotrópicos
continuarão como meros tapadores do mal-estar. Como afirmou o criador dos
psicotrópicos, Laborit, citado por Americano do Brasil (p. 56), "A humanidade,
ao longo de sua evolução, foi obrigada a passar pelas drogas. Sem os psicotrópicos,
talvez tivesse havido uma revolução na consciência humana..."
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Resumos
La cuestión de la enseñanza de la psicopatología es aquí abordada a partir de
retomar los elementos de la historia de la constitución de la clínica médica y de los
clásicos, hasta la constitución de la psiquiatría clínica. En ese recorrido, se analizan
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los instrumentos nacidos de la atención cuidadosa de los padecimientos y,
posteriormente, con la conquista del dominio sobre la enfermedad a través de la
nosografía, donde la marca pesimista del asilo tornó la clínica un ejercicio escolástico.
Se propone, en consecuencia, un retorno a la clínica contra el empiricismo y el
esencialismo clinicista.
Palabras claves: Clínica clásica, psicopatología, enseñanza
La question de l’enseignement de la psychopatologie est abordée ici, à partir de
la reprise des élements de l’histoire de la constitution de la médecine clinique et des
auteurs classiques, jusqu’à la constitution de la psychiatrie clinique. On y analyse les
instruments nés d’abord, d’une attention particuliére portée à la souffrance et,
postérieurement, de la conquête de la maitrise de la maladie grâce à la nosographie
– à partir de ce moment, la connotation pessimiste de l’asile a transformé la clinique
en un exercice scolastique. On propose alors de revenir à la clinique, abandonnant
l’empirisme et l’essencialisme clinique.
Mots clés: Clinicisme, nosographie, enseignement, psychopatologie fondamentale
The question of the teaching of psychology is taken up here based on factors
related to the constitution of medical clinic, of the classics, and of the constitution of
the psychiatric clinic. Also analyzed are instruments born of careful attention to
suffering and, later, to the domination over illness through nosography, where the
pessimistic mark of the asylums turned the clinic into academic exercise. A return to the
clinic against empiricism and clinicist essentialism is therefore proposed.
Key words: Clinicism, nosography, teaching, fundamental psychophatology
Versão inicial recebida em fevereiro de 2002
Aprovado para publicação em novembro de 2002
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